sábado, 2 de julho de 2011

O outro lado da moeda - Texto: José Soares de Melo

Enquanto o ônibus quase vazio fazia o trajeto Boa Viagem-Piedade, veio-me a mente lembranças da minha infância na pequenina e então atrasada Custódia. E relembrei uns pobres versos que cometi recentemente, publicados neste blog, relembrando as coisas boas da infância e atentando para o fato de que só mencionei as coisas boas, as lembranças gostosas daquele tempo. Aliás, parece que ninguém gosta de lembrar o lado ruim de nenhum momento da vida. E questionei-me: porque? E comecei a lembrar alguns momentos que sinceramente não são bons de recordar. Por exemplo, topada. Qual o menino livre que naqueles tempos, brincando e correndo descalço pelas ruas da cidade, jogando bola de meia, não esfolou o dedão do pé, numa topada “da mulésta” daquelas? Pense numa dor da gota. O jeito era improvisar um curativo nada convencional: lavar o ferimento, botar pó de café e enrolar o desditoso dedão do pé com pedaço de pano. E pedir a Deus que o pai ou mãe não completasse a desdita com um novo curativo, onde seria aplicado álcool e o famigerado mercúrio cromo, que ardia pra danar.

Quer ver outra lembrança nada agradável? Era levar uma mijada de “potó” ou de “papa-pimenta”. Queimava mais que fogo, e no outro dia a grande bolha denunciava a queimadura. Mas doer mesmo era quando a bendita bolha estourava. Interessante é que hoje em dia ninguém fala mais em “Potó” ou “Papa-Pimenta” . Parece que foram extintos pelo “pogréssio”.

Outro inimigo da molecada naqueles tempos de Custódia, era um bezourinho, minúsculo, fedorento, que proliferava nos frondosos “pés-de-figo” espalhados por toda a cidade. Conhecido por “Lacerdinha”, aqueles bichinhos minúsculos causavam profundo ardor, queimava mesmo, quando caíam nos olhos. Também não vejo mais falar deles. Aliás, com a erradicação dos “pés-de-figo” eles ficaram sem o habitat natural.

Já na periferia da cidade, que se resumia a Rua da Remela e adjacências, era a conjuntivite, que não raro atingia praticamente toda a cidade, com o sugestivo nome de “remela”. Sem falar na “papeira”, (Caxumba) que segundo crença, se o menino fizesse esforço ela desceria para os “ documentos” e era morte na certa. O remédio era passar a lama de uma casa de “João-de-barro”, e mugir na porteira de um curral, de manhãzinha. Catapora (varicela) e Bixiga ( Varíola) eram os maiores temores daquela época.

Uma vez por ano Custódia recebia milhares de visitantes que, se por um lado era uma beleza aos olhos, por outro lado era um problema para a cidade. Falo das andorinhas de março. Milhares delas se aglomeravam no telhado da Igreja matriz, e sempre que sino badalava era uma revoada imensa, formando verdadeiras nuvens de aves que saiam e como sempre, despejando seus indesejáveis “presentinhos” na cabeça de quem estava por perto. Recordo que a molecada se vingava de uma maneira muito original, apesar de malvada: faziam pequenos anzóis de alfinetes, pegavam mariposas vivas e colocavam como iscas nesses anzóis, presos por uma fina linha. Quando soltava a mariposa, esta ficava batendo as asas no ar, suspendendo o pequeno anzol. Quando o olhar atento de uma andorinha via a mariposa, dava um vôo rasante e bicava a mariposa e junto a ela o anzol, era fisgada a pobre ave. Malvadeza, mas era a vingança da molecada.

Tudo isso aí era o que de pior existia para a molecada daquele tempo. Pior do que isso? Tinha, sim. Era ter o entusiasmo de ver chegar o Circo de Sêo Alegria na cidade, e na estréia do espetáculo (no verdadeiro sentido da palavra), não ter dinheiro para apreciar as piadas inesquecíveis do Palhaço Biriba ou as magias incríveis do maior ilusionista que já vi até hoje, Sêo Alegria. Era impressionante os números de magia de Sêo Alegria. Creio que ele praticava a hipnose, pois certa vez eu estava sentado em uma “preguiçosa” no oitão da mercearia de meu pai, na Av. Manoel Borba, quando ele, acompanhado da meninada passou por perto de mim. Me olhou fixamente e mostrou uma grande e reluzente moeda, que seria de ouro e perguntou-me se eu a queria. Claro que disse que sim, tendo ele soltado em minha mão a dita cuja. Levantei-me às pressas e fui mostrar a fortuna que havia ganho a minha mãe e…desilusão: estaca com um caco de telha na mão.

Não havia sofrimento maior que ficar do lado de fora do circo, e não poder apreciar aquele mundo, pela ausência de alguns míseros trocados. Ainda bem que tais lembranças raramente nos acomete, as boas lembranças se sobrepõem a essas.

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