sábado, 27 de fevereiro de 2016

O jacaré - Autor: Gilberto Dantas

           Naquele início de noite já estava atrasado para assistir a primeira aula no prédio antigo da Faculdade de Direito Cândido Mendes, na Praça XV, no Rio. A aula começava às 19,00h, em ponto. Eram 18,55 quando corri esbaforido rumo à imensa escadaria da Faculdade, pulando de dois em dois degraus. Estava com 19 anos e, portanto, em plena forma física e ainda por cima com meia dúzia de namoradas, todas ao mesmo tempo, naturalmente, e que não me davam trégua. 

           Estava atrasado justamente porque me demorara com uma delas ao sair do trabalho. A minha pressa tinha um outro motivo tão importante quanto assistir a primeira aula. É que o Henrique Jesuíno Guimarães, velho amigo que mantenho até hoje, costumava nos últimos 10 minutos antes de entrarmos em sala contar umas piadas maravilhosas, com uma interpretação que só ele sabia dar. As piadas de português, então, eram notáveis.

           Naquela noite mesmo ele estava acabando de contar a do cientista português, o único a dar um jeito nas asas de um avião supersônico. Em todos os testes feitos com cientistas alemães, americanos, franceses e ingleses , as asas do avião sempre se partiam depois de alcançada uma certa velocidade. Desesperados, os inventores do supersônico tiveram que apelar para o cientista português. O cientista mandou fazer uns pequenos furos bem no meio das asas e elas não mais se partiram. E o Henrique, neto de português, com sotaque lusitano de Traz-os-Montes, imitando o gajo, explicava como foi resolvido o problema: “simples, mó amigo, apliquei a fórmula do papel higiênico, que nunca parte no picotado.”

           Bem, realmente, naquela noite não cheguei a ouvir a piada, nem um outro amigo nosso, o Gilberto Toldo, pois esse sempre chegava atrasado,mesmo! Aconteceu que quando estava subindo a escadaria, um moço, bem magro, que dizia ser o José de Arimatéia, segurou-me pelo braço e disse que havia gostado do meu perfil grego , o que já me deixou arredio, pois nunca tinha ouvido falar até então em perfil grego, estaria recebendo uma cantada? 

           Mas acabei ouvindo o que ele tinha a dizer: - escuta, eu dirijo peças de teatro infantil e estou precisando de alguém que faça o papel do jacaré. – mas eu nunca fiz teatro e acho que não tenho jeito para isso, além do mais sou muito tímido.  – não tem importância, não, tudo na vida é treino. Olha, vou deixar com você esses papéis com a fala do jacaré, você tem uma semana para treinar, certo?                          

           Preciso de um ator com esse seu perfil, por causa do seu nariz, que chamo de grego.
                        
           Tentei sair fora, mas acabei pegando a papelada e ficou combinado que na semana seguinte nos encontraríamos para combinar a sério os ensaios. Mas antes de me despedir, perguntei ao desconhecido como seria a minha entonação. Foi quando o Arimatéia leu o que seria a minha primeira fala, com voz de falsete, meio esganiçada e bem alta: “A gaita, a gaita, eu não posso ouvir essa gaita que tenho vontade de chorar”
                       
            Não preciso nem revelar às minhas amigas e amigos que estão agora me lendo, o meu furtivo pensamento: “levo essa papelada para casa, jogo numa gaveta e na semana seguinte devolvo para esse cara dizendo que não tenho jeito para o negócio”. E foi mesmo o que aconteceu. Devolvi o script e nunca mais vi o Arimatéia.
                         
            É verdade que até participei de uma única peça teatral, mas quando tinha 07 anos, no Colégio Angelorum, na Glória, num papel bem secundário, recitando uma pequena poesia, para a alegria da minha mãe, com minha irmã Naná, no colo, assistindo a peça e, claro, foi a última a parar de bater palmas.Coisas de mãe- coruja.Eis aí um belo exemplo de pleonasmo.

            Apesar da minha pretensão de ser um homem realista, com os pés bem grudados no chão, e não ser dado a arrependimentos, nessas horas de memorialista, me vejo, de repente, sonhando com o que poderia ter me acontecido se naquele dia tivesse aceitado o convite daquele homem do teatro.
                         
            Me pego sonhando com atuações fulgurantes no Teatro de Comédia, ou no Teatro dos Quatro. Dando entrevistas com o pseudônimo de Gil Vicente. E, pasmem! Sonhei outro dia que pegava o jornal de manhã e lá estava o cabeçalho bem grande: “Morre Paulo Autran, o teatro brasileiro fica mais pobre. Em compensação, ainda temos Gil Vicente, o discípulo que mais se aproxima de Autran!”
                         
            Despertei de uma noite agitada e olhando para minha mulher, ainda suspirando,dei graças a Deus por ter tido um sonho mais ou menos humilde, afinal não sonhei que era o Autran, e jurei comigo mesmo não contar nada para ela, que sempre me achou um pouquinho vaidoso.
                         
            É exagero dela, podem acreditar.Não minto. E posso afirmar: meu nariz é grego, não é de Pinóquio.

Autor: GDantas - Miracema/RJ

Publicação autorizada  através do e-mail de 11/10/2011

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