segunda-feira, 10 de setembro de 2012

O menino e a prosa - Autora: Regina Helena - Vosmecê

Na sua vida no Piauí valia ver as estrelas correndo pela noite, prosear um pouco com as borboletas e lagartos; a primeira vez, o menino se espantou com seu dom. O menino se espantou depois se aquietou, depois sorriu e, nas tardes quentes, quando o sol cismava de fazer ginástica até mais tarde, ia para lá, bem no fundão da caatinga, pra prosear com o lagarto, flores secas, borboletas, e até com uma cobra neurastênica que encontrou embaixo de um toco seco: - Cuidado criatura, cuidado! Não estou de bom humor hoje, estou só aguardando o diretor do documentário para ir embora daqui; vou para Hollywood,entendeu, entendeu e foi embora sem despedidas, serpenteando pela estrada.  Mas o menino não entendeu o porquê de tanta raiva e continuou a conversar com as borboletas que passavam, com a graúna sempre perseguida, a águia Teresa, um tantico soberba, o carcará Eusébio meio sonso, o lagarto Arquimedes sempre com frio.  Tornaram-se amigos e confidentes até do sol, que iniciara uma série de abdominais pela manhã, to muito gordo sabe menino, preciso de exercício e o menino aproveitava e, agarrando-se nos raios, voava pela catinga empobrecida e ganhava um torrão de sol com sabor de açaí; e quando a noite caia a lua pousava seus braços frios sobre seu peito e também lhe oferecia um torrão de lua com sabor de baba de moça.  Conversava então com os vaga-lumes meio mulherengos, as corujas circunspectas, as onças desconfiadas, você criatura, é uma exceção, o bicho-homem é mau e interesseiro. Mas o menino ria e acariciava o pelo macio.  Assim era sua vida e ele era feliz com ela, até que um num dia acabrunhado e encolhido descobriram seu dom, enquanto convencia um graveto partido a não chorar por estar longe da mãe.  Foi levado para a capital, depois para o sul, e lá, entre o pranto da mãe que o apertava contra o peito e o pai, que coçava o queixo acabrunhado, foi deixado numa instituição para gente problemática disseram, mas ele não entendeu bem e sorriu tristemente pela janela de um quarto pequeno e branco onde enfermeiras-marionetes o vestiam e despiam com rudeza.  Tornou-se uma criatura calada e tristonha e da janela do quartinho, sabiás e rolinhas cochichavam e o olhavam consternados.  Foi numa dessas noites, quando o luar escorregava pelo parque que o menino viu águia Teresa que lhe pediu silencio. Nesse instante, as andorinhas abriram sua janela e saltou nas costas da amiga águia.  Foi uma viagem longa, onde estrelas e vaga-lumes iluminaram o caminho e, ao raiar do sol que o esperava com um sorriso de pai, chegou ao Piauí, horas depois, na caatinga que floresceu suspeitosamente para esperá-lo.  Nunca mais foi visto.  Alguns dizem que, á tardinha aparece no lombo da onça para prosear com os amigos que vão beber água à beira do rio.  Outros que e visto a voar agarrado aos raios de sol e rindo, rindo....outros ainda, que pula nos prados da lua e que São Jorge o leva para cavalgar. Crianças o vêem com mais clareza.  Adultos têm mais dificuldade- tão somente os que olham a vida com o coração vêem o menino e ouvem sua prosa. O menino nada sabia sobre essa terra e nem se interessou; cresceu,  casou, teve filhos, que, por leis hereditárias brincam de esconde-esconde com as estrelas e proseiam com animais. Questão de sorte. Ou de olhos bem abertos.

Autora: Regina Helena - Vosmecê - São Paulo/SP

Página da autora:
http://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=116197
Publicação autorizada através de e-mail de 09/09/2012

Um comentário:

Carlos A. Lopes disse...

Seja bem vinda ao blog Vosmecê.