sexta-feira, 5 de abril de 2013

O anjo de Altamira

Autor: Jailson Vital de Sousa
 
Cheguei à cidade de Altamira, no Pará, no princípio do ano de 1974. Fui trabalhar na manutenção da Rodovia Transamazônica, recém construída, e o contrato do DNER com a empresa em que eu trabalhava, ainda tinha 18 meses para serem cumpridos. Fui morar em uma casa construída em madeira, no acampamento dos engenheiros, que distava 1,5 km da periferia, e ficava à margem da rodovia. As casas eram bem feitas e confortáveis para o padrão das demais construções da cidade. De negativo, tinha a cor escura da madeira que, não refletia a luz natural, tornando o ambiente pouco iluminado, e as telas nas janelas para impedir a entrada dos mosquitos Carapanã que infestavam a selva amazônica e cuja picada deixava o local da pele esbranquiçado e com uma coceira dos diabos. Incomodava também, a solidão. No acampamento, que durante a construção da rodovia devia ser bastante movimentado, restavam eu e a família de outro engenheiro que trabalhava em projeto diferente, e assim tínhamos pouco contato. A distância de Altamira para outras cidades pela rodovia Transamazônica era: para o leste, a cidade de Marabá e para oeste, Itaituba, ambas a 500 km.  Como essa rodovia não era pavimentada, uma viagem de Altamira para qualquer uma delas levava um dia inteiro se não fosse  época de chuvas, quando então tornava-se imprevisível uma viagem dessa. Para Belém, somente de barco a partir do porto de Belomonte pelo rio Xingu, ou de avião. Portanto, a não ser por esses dois meios era impossível sair de Altamira. Para não ter problemas causados pela “clausura”, pelo menos de 3 em 3 meses, eu pegava um avião para Belém e ficava por lá durante uma semana. Eu gostava da Belém daquela época. Apesar do forte calor potencializado pela umidade elevada, o ar me parecia ter um odor agradável, a gente que habitava aquela cidade era simpática e amigável. Enfim, eu gostava de estar em Belém. Aprendi a gostar e também a dançar, ou tentar dançar, o carimbó, ritmo regional apressado que, tem passos próprios para se dançar. Encantava-me também, sendo sertanejo, como sou, a imensidão de água da Baia de Guajará, que cerca Belém.
Não posso dizer que a minha estada em Altamira não foi proveitosa em termos profissionais e pessoais. Fiz grandes amizades com pessoas locais e colegas de profissão, aprendi a trabalhar em ambiente de clima adverso. O Rio Xingu que margeia a cidade, o qual fazia parte das minhas quimeras de adolescente, quando ainda no curso ginasial, no estudo de geografia, estudava os rios afluentes do Rio Amazonas, tornou-se objetivo dos meus sonhos de descobrimentos. Enfim, banhei-me, alimentei-me dele e naveguei no rio dos meus sonhos da adolescência. Mas a paisagem nem sempre é bela como desejamos. A vida tem seus truques.
Certa vez fui ao hospital local, não me lembro do motivo. Na sala de recepção encontrei uma garota que aguardava atendimento. Tinha cerca de 7 a 8 anos de idade, vestia um vestidinho simples que ia pouco abaixo dos joelhos, nos pés uma chinela empoeirada, os cabelos alourados e pouco cuidados desciam sobre os ombros magros. O seu olhar cruzou com o meu e seus olhos azuis me fitaram. Olhei fixamente para aquele rosto sem expressão e fiquei emocionado com o que vi. Pareceu-me que alguém a tinha maquilado fazendo enormes círculos arroxeadas no entorno de seus olhos. Naquele momento eu era só indagação, enquanto aquela garota parecia que pedia-me socorro, sem no entanto fazer qualquer movimento com os lábios ou com os olhos. Talvez, não entendesse porque estava ali, nem da gravidade da sua situação. Então abaixou a cabeça como que resignada com o seu destino. Soube depois que ela tinha leucemia. A imagem daquela menina desde aquele momento, impregnou-se em minha mente. É horrível o sentimento de impotência diante da fatalidade.
Deduzi, pelo tipo físico que, ela era filha de algum das centenas de colonos que teriam vindos do sul do país para morar nas agrovilas, que eram conjuntos de casas pequenas, feitas de madeira, agregadas a um lote de terras doadas pelo governo federal e situadas à margem e ao longo da Rodovia Transamazônica com o objetivo de cultivar o solo e povoar a região. Esse projeto não deu certo e os lotes acabaram sendo abandonados pelos colonos.
A manutenção da rodovia, não exigia diretamente a minha intervenção constante. Havia uma equipe de operários, com um encarregado que comandava a realização dos serviços, usando máquinas e caminhões. Essa equipe adentrava a rodovia, cujo trecho sob nossa responsabilidade media mais de 200 km, toda segunda feira e só retornava aos sábados. Levavam os mantimentos necessários para uma semana e dormiam em barracas armadas por eles ou nas casas abandonadas das agrovilas.
Certa feita, um caminhão retornou em um dia no meio da semana, fato que só acontecia quando alguma máquina quebrava e era necessário vir buscar alguma peça, ou outra emergência séria. Aproximei-me para conversar com o motorista e indaguei o motivo da vinda. Ele apontou para a carroceria e mostrou-me um caixão funerário. Disse que era o corpo de uma menina que havia morrido de leucemia e o pai havia pedido a caridade de trazê-la para ser sepultada em Altamira. Eu não sei por que uma garota de quem eu não sabia o nome, causou-me tanta comoção naquele instante. Era a garota do hospital. Ela havia se tornado anjo.
Finalmente chegou o dia da minha partida de Altamira. Dentro do avião, enquanto eu tirava as últimas fotografias da cidade, através da janela, uma confusão de sentimentos tomava conta de mim. A alegria por sair enfim de uma cidade que me sufocava, a tristeza por deixar pessoas queridas e saber que nunca mais as veria, a satisfação pelo dever cumprido e a impressão que ainda carrego comigo de que um dia eu vi um anjo de olhos azuis e olheiras roxas. O meu anjo de Altamira.

Autor: Jailson Vital de Sousa - Custódia/PE
Publicação autorizada pelo autor
Crédito da ilustração: Edmar Sales (veja o marcador deste artista neste blog)

3 comentários:

Carlos A. Lopes disse...

Seja bem vindo ao blog Gândavos, Jailson Vital de Sousa.

Jorge Remígio disse...

Parabéns! Jailson Vital.Belo e comovente o seu texto. Abraço

joaquim belo disse...

Muito bonito e comovente o texto do meu amigo Jailson Vital, Ele havia me narrado a essência do texto a semana passada, quando estive com ele em Vitória/ES.
Abraço!