quarta-feira, 14 de maio de 2014

Terra de silêncio

Autor: Fernando Cyrino

Senhora fica olhando para a gente assim do sertão, com essas manias de tirar recados da natureza e deve achar que somos gente boba. Povo que só entende de mato. Aqui tenho rádio e televisão. Sei do mundo. Jornal também chega, mas as letras que possuo são miúdas. 
No noticiário das vinte horas aparece aquela mocinha do sorriso bonito, mostrando como será o tempo pelo Brasil afora. Acha mesmo que acredito nela? Sou muito mais a minha reparada nas nuvens, seus desenhos e formatos. A direção do vento e se ele vem rasteirinho por modo de levantar poeira ou, ao contrário, chega mais alto de jeito a remexer os cabelos das mulheres.
Mire e veja aquela tropa no céu vindo lá das bandas do oceano. Doutora olha e só vê as graças delas de serem assim tão bonitinhas. Feitas parece que de algodão. Pois eu não vejo essas belezas que a senhora enxerga. Sinais nelas são aziagos.
O povo daqui se arrepia quando chegam. Vindas assim desse jeito do mar, tão altaneiras e levezinhas de brancura, é porque não conseguiram se engravidar. Camas delas se encontram nas lonjuras de águas profundas.
É tudo barriga oca. No máximo carregam um uiuiui de neblina, daquelas mirradas que deixam gotinhas em pontas de folha, mas que o chão nem sente. Incapazes mesmo que seja de chuvisco. 
Vai ser ano de penúria aqui na roça. Nessa caderneta de apontar tudo que a gente vai assuntando, senhora pode escrever o que lhe afirmo. Foi numa era assim, cheinha dessas nuvens agourentas que o mal renasceu aqui na Laje da Corte.
A dona vê as construções todas se findando. A maioria nem deixou rastro. Mato cresceu onde eram seus pisos e alicerces. Essas que agora admira e tira retratos, são as sobreviventes. As que pertenceram aos brancos. Moradores foram gentes poderosas que fizeram e aconteceram por essas baixadas afora. 
Imagina que tem gente que pensa que aqui se chama assim por conta de que algum tal, quem sabe um poderoso português, aqui construiu seu castelo, que ninguém nunca soube mostrar dele, nem um cascalho que fosse.
Esse tal, disseram ter sido visconde vindo para cá meio fugido, por conta de roubos na corte do Rio de Janeiro. Chegou com sua parentalha e construiu palácio. Povo é meio besta e até acha que visconde é capaz de ter corte. Essa raça de nobreza não era possuidora de grande valor nos castelos, senhora sabe? Algum tabaréu joga conversa fora e a bobagem vira o real. Pode isto? 
Laje da Corte é porque cá, nos Setecentos, foi sítio de quilombo. Terra de pretos fugidos das malvadezas dos patrões e que aqui constituíram seu lugar de liberdade. Era gente em sua grande maioria vinda do Congo e de lá tinham trazido seus costumes e religiões.
Madama acha que eles eram assim todos iguaizinhos? Equivoca-se demais. Tinham degraus de importância entre eles. Viajaram todos em porões de navios, mas mesmo lá nos fundos, havia uns que respeitavam mais e outros menos. Pensam que eles não possuíam, mesmo nessas bandas do Brasil, os seus reis, suas rainhas, seus príncipes, duques e condes?
E foi exato aqui, meu pai me contou que o pai dele lhe tinha afiançado, que o velho dele lhe tinha dito nas penumbras dos passados. Palavrórios que vem viajando desde a época da primeira tragédia. Exato aqui, nesses chãos, moravam os tais Rei e Rainha Congo.
Naquela laje bonita de pedra, lá no alto, era que abençoavam seu povo. Diziam-lhes do que deviam fazer para conviver bem e ensinavam para eles as táticas de guerra. Necessárias para que se protegessem dos capitães do mato. Aqueles malvados pagos pelos fazendeiros, com missão de encontrar e devolver à escravidão, os negros escapados das fazendas de cana.
Senhora disse que falei de primeira tragédia e ficou curiosa. Quer saber mais sobre ela? Relatar estes sucessos nos longínquos da terra vai ser importante para seu entendimento. Tratar deles é preparar o seu coração para compreender a segunda. Essa que trouxe a dona aqui para os nossos sertões.
Relutei em sair do trivial da minha casa, tão distante daqui, para vir até essas feias ruínas. A doutora se recorda bem do tanto que insistiu? Repara não que meus olhos vazam. Chorar homem não deve de. Mas aqui, debaixo da terra que pisamos, estão os ossos do meu povo. Se não foi comido por bicho, quando minha mãe acabou de curar meu umbigo, ele também se misturou nessas poeiras. Um tantinho de mim aqui ainda vai existindo.
Tergiverso, me desculpe. Aprendi desde menino a manejar bicho volteando, para que se cansasse e assim compreendesse minha autoridade. Duas desgraças, distantes cada uma para mais de duzentos anos, irromperam por aqui. Pensa a dona que acabou? Por isto todo mundo foi embora. Agora vivem nesses sítios essa meia dúzia de gatos pingados. Não era povo de existir conosco antes dos acontecidos.
Povo que veio depois e vai sobrevivendo. Creem que vão endinheirar-se. Falam até que o Senhor abençoa os enricados. Terrenos sem valor nenhum esses tantos. Tomaram posse e só tiveram que ajeitar as casas que já iam se transformando em taperas. 
Quando soube que por aqui existiam, vim assuntar com eles dos ocorridos e do que virá. Deram-me ouvido nenhum não. Eles são Bíblia. Renegaram a Santa Igreja Católica Apostólica Romana e acreditam que Deus vai protegê-los quando o demônio acordar de novo. Levaram-me a serio? Mangaram de mim.
Agora a dona sorri ao conhecer que existe mais torresmo debaixo deste meu angu. Sim, as desventuras não estão todas cumpridas. Ainda há o que irá chegar e a maldade será muito maior. Senhora já ouviu falar dos quatro cavaleiros? Aqueles do Livro do Apocalipse? Pois começará por essas bandas a cavalgada perversa deles. Mas dessas coisas do adiante não desejo lhe assuntar. Tenho pavores e me persigno. Medos demais. 
Trato do fim sem lidar com o começo. Misturo os pensamentos e posso até me perder nessas veredas escuras. Falo de mim. Cabeça da senhora é mais organizada. Cheia das inteligências adquiridas nos livros e bancos de escola. Faculdade é fineza que respeito.
Poderia contar puxando qualquer barbante, ou ficar em roda qual redemoinho e ainda me compreenderia. Receios são meus. Tem passarinho que aprecia fazer curva no voo. Há outros que miram um ponto em frente e partem. Sou desses.
Cachoeira cai é devagar? Despenca de uma vez, pra lá embaixo formar um lago. Pode ser dos minguados, mas haverá ao pé de cada uma delas sempre esse resguardo das águas. Parece que, assustadas por terem descido tão depressa, precisam de tempo para se recompor e continuar rompendo avante.
Ruína daqui também se deu de uma vez. Foi na seca do Cinquenta e Seis. Era homem feito. Viúvo de Domingas estava casado com Das Dores. Moça mais nova e vistosa que só ela. Morreu nove meses depois do parto de João Batista e ninguém me tira da ideia, que foi já por conta da desdita que ela se finou.
O menino, nome de João, lhe havia contado, também não vingou. Morreu no seio da desventura que vou lhe narrar. Sangue meu tem mais nenhum, que eu saiba, viajando nesse mundão de Deus. Tenho sorte com filho e mulher não. Amasiei algumas vezes, mas sem ter sido feliz. Depois, na precisão das carnes buscava alguma necessitada de dinheiros. Essas que as pessoas chamam de da vida. 
De uns anos para cá os desejos arrefeceram e vivo como Deus manda, lá sozinho, no meu barraco. Tenho dinheiro mensal do governo. Todo dia dez viajo sessenta quilômetros. Vou ao banco pegar o que é meu. Dá para comprar uns trens e os remédios.
Seca vira desespero é quando as águas todas somem. Primeiro o rio vai se tornando mirrado. Emagrece rápido e enfim fica só aquele areal. Uns tempos ainda e a gente cava. Não é que lá no fundo a danada da água tinha ficado oculta?
Chega a hora em que nem essa tem mais. Ainda haverá de ter uns restinhos nos derradeiros dos açudes. É o tempo de beber com os bichos. É boi, mulher, cachorro, menino, porco, homem, galinha, cabrito, pato. Tudo junto e misturado indo se servir no lamaçal.
Os caminhões do governo, bem antes da ocorrência dessa última hora, já chegaram trazendo o adjutório da bendita água. Naquele tempo não era raro que faltassem. As políticas podiam fazer com que viessem ou que sumissem. O povo por aqui sofre.
Foi durante a seca, mas ela não pode levar a culpa. Era somente mais um tipo de legume jogado no tacho do cozido. Este era muito maior. O padre louro, daqueles de ficar vermelho com tempinho miúdo no sol, chegara faz pouco tempo do estrangeiro. Vinha todo último domingo do mês, montado em lombo de burro, celebrar as liturgias.
Homem rude de não falar uma palavra da nossa língua. Incapaz de sorrir, nem que fosse para criança dessas ainda de poucos dentes. Conversas dele eram nos versos embolados de não se compreender o que desejava. Bom de a gente se confessar, isso ele era. Não entendia os nossos pecados e nem compreendíamos as penitências dadas.
Missa minguava a olhos vistos. O povo foi enjoando daquele jeito de não se entender as coisas. Teve um domingo em que só estavam na Igreja o sacristão Genésio, dois coroinhas - que menino aprecia demais essa função - e uma velha surda.
Genésio era meu pai. Ao recordar tal fato ele dizia do quanto o padre bufava de ódio na sacristia. Falou com ele, dedo em riste, umas tantas coisas que não teve ideia de quais foram e partiu. Nunca mais retornou a Laje da Corte e muito menos enviou pároco substituto.
Papai que não entendia dessas línguas dos forasteiros, foi homem dos mais sabidos. O que fez foi traduzir aquelas palavras de ira, tão incompreensíveis. Estava óbvio que ele esconjurava o lugar. Duas vezes pelo menos, me afiançava, o sacerdote falou de terrenos arrasados. Daí a depreender que o lugar iria desandar, tinha sido mera questão de tirocínio.
Relatei essas coisas olhando forte a senhora. Irá me desculpar por mirar assim potente seu rosto, mas precisava saber se estava mesmo acreditando no que aprendi do meu velho. O porquê da minha dúvida? É que tem gente que ri, caçoando que de maneira alguma um analfabeto seria capaz de traduzir, uma palavra que fosse de gringos.
Senhora crê em mim ou nesses incrédulos? Precisa me dar resposta não. Já me arrependi de falar assim. A dona há de me perdoar essa forma desarrazoada de dizer as coisas e de mirar os outros, direto, em seus olhos.
Padre que se foi para jamais retornar. Dinheiro que não visitou os bolsos de mais nenhum dos que ali tinham suas casas. Tudo passou a dar para trás. Era prejuízo em cima de mais prejuízo. Gente rica ficou pobre e os pobres se tornaram miseráveis. Muito mais que a seca veio a fome. 
Tentou-se de tudo. Mudanças de lavoura, criação de cabras, galinhas capote, aquelas de angola. Até petróleo houve gente buscando. Para sobreviver havia a precisão imediata de se arrumar outro ganhame. Mesmo que não escorressem os cobres, que pingasse de vez em quando, para que a vida pudesse seguir, severina, como sempre foi. Mas este era apenas o começo do rolar das pedras pela ribanceira abaixo. 
Depois das chuvas, que quase não nos visitaram, veio a malária. Praticamente todo mundo ganhou a febre e uns tantos se foram, vítimas dela. Ainda quando o mosquito se acostumava de vez com o sangue da gente, chegou a cólera. Morreu mais gente da diarreia branca. 
Até aí, negócios falidos, malária e cólera, era tudo parte da existência difícil a qual todo mundo estava acostumado. Povo começou a desconfiar mesmo, que meu velho tinha razão nas traduções dele, foi quando aconteceu a invasão das pererecas. Daquelas pequeninas, parecendo soltar gosma pelas patinhas pegajosas. Joãozinho, meu filho, senhora já é sabedora, que Deus o tenha, não brincou com elas. Partiu para o céu nas febres da maleita, a tal sezão. 
No início foi tudo grande festança. Meninos juntando as sapinhas em gaiola de grade fina para tiziu. Passados uns dias veio o incômodo.  Não houve cristão que conseguisse permanecer distante delas. Invadiram as casas. As bichinhas saltavam em cima da gente na cama, viviam aos milhares na cozinha, caiam no prato de comida. Até ao se deitar na rede se descobria haver delas por debaixo do corpo.
E o de noite? Aí era o pior. É que elas tinham um coachar irritante e fino. Semelhança assim com um tipo diferente de assobio de quem sente a falta de alguns dentes. Senhora já imaginou milhões delas cantando ao mesmo tempo? Ninguém conseguia mais dormir.
Teve um domingo que todo mundo combinou de matar perereca. Foram sacos e sacos delas queimados em grandes fogueiras e nos fornos de carvão. E diminuiu alguma pelo menos? Impressão que tivemos foi de que elas haviam aumentado. 
Da mesma maneira que surgiram um dia, sem mais nem menos, em outro foram embora. Só que deixaram embaixadores mais terríveis ainda. Uns mosquitinhos pequeninos de bunda branca, aos quais as gentes davam o nome de pium. A picada de um deles dói e deixa coceira que pode até ferir. 
Acaso viessem só uma meia dúzia a picar para chupar o sangue, se cantaria as aleluias ao Senhor. Eram miríades deles a nos desesperar. Tinham hora marcada. Picavam das quatro da tarde às sete da noite, mas essas três horas pareciam durar uma eternidade.
Todo mundo passou a usar camisa de manga comprida e enrolar nas mãos panos para se proteger. Ficar dentro de casa, a senhora me pergunta se resolvia? Respondo que não. As mães deles não lhes deram educação. Não pediam permissão para entrar. Qualquer canto era lugar para azucrinarem as criaturas de pele fina. 
A mosquitada durou o verão todo. Foi vindo o inverno e a criançada começou a tossir. É gripe? Trata-se de pneumonia? A benzedeira não tinha mais tempo para cuidar das suas tralhas. Era um tal de abençoar criança o dia todo que cansava demais. É que as mães ficavam com muito medo de perder suas crias.
Não havia criança que passasse ao largo da doença. Foi assim até que Jorginho de Zenaide, no meio da tosse, cuspiu um catarro avermelhado. Parece que tinha sido sinal de alarme e em poucos dias, a criançada estava toda vertendo sangue pela boca. A malvada da tuberculose atacava sem misericórdia. Um tanto de anjinhos, filhotes dela, estão ali onde era o cemitério.
Nessas horas coveiro faz festa. Senhora sabe que ele cobra para cavar a sepultura e enterrar? E se a família desejar que capine e plante umas florezinhas depois, também precisa ofertar dinheiro.  E esse o povo já estava esquecendo da cor que ele era.
A religião então foi voltando. Deus não somente tinha largado Laje da Corte. Fizera muito pior. Entregara aquela gente que abandonara o vigário ao demônio. Tinha chegado a hora de pedir perdão e voltar, contritos, aos bancos da capela. Havia que se lançar, sem dó nem piedade, os joelhos no chão.    
Mas aí quem disse que se conseguisse reverendo ou freira para animar e conduzir as rezas? Ninguém estava disponível para acudir os lajenses apoiando-os na obtenção do perdão dos céus, pelo mal feito ao gringo. Com enviado de Deus não se brinca, todos estavam descobrindo agora.
Fossem somente essas pragas, que Deus seja louvado. Mas vieram sete. Não é que a terra também se vingava em nome do tal cura? Zico de Donana falou que as pessoas que têm força para o mal feito, acaso cuspam no chão, limpando a boca das palavras imundas, em seguida ao que desejaram de ruim, a peste vai junto à saliva e a terra, no em volta de onde o cuspe cair, também deixará de gerar vida.
Vira solo morto, falecido, defunto. A senhora veja que desespero. Nem maxixe e tomate miudinho, que eram mimos de horta e que nasciam do nada, sem ninguém ter botado semente, eram capazes de presentear seus frutos. Não temos dúvida de que o desgraçado do padre escarrou antes de tomar a estrada.  
Quem poderia viver aqui? Contratamos um caminhão e fomos de pau de arara para o Sul. A Terra Prometida de São Paulo. Viagem mais triste que essa jamais teve. Todos tinham perdido gente querida nas desgraças de Laje da Corte. Fiquei por lá doze anos.
Comecei como ajudante de pedreiro e terminei como porteiro de prédio. Um todo azul, dos mais bonitos e chiques de um lugar que se chama Morumbi. Senhora conhece? Só voltei para o sertão depois de velho.         
Prometi que ia contar os eventos em linha reta. Saindo daqui e indo para lá, mas fiz diferente. A dona haverá de me perdoar de novo. Acho que nossa visita às minhas saudades e angústias, prejudica a organização dos meus juízos. Comecei pelo meio, não é mesmo?
Pois então termino narrando a primeira desgraça, desse lugar maldito e pelo qual meu apreço é tão grande. Certeza de detalhes, quem há de afiançar tal se assina em documento? Há coisas que se sabe, tem-se a impressão, desde o nosso entender de se ser humano. Tais quais aquelas marcas de ferro do lombo da novilha, nossa pele está marcada por elas. 
Pois senhora já sabe que isto aqui foi terra de pretos? Pois sim, não lhe tinha dito? Viveram na tranquilidade por várias gerações. Tomavam seus cuidados. A existência era arriscada e sempre tinha gente de sentinela a vigiar os morros e estradas em torno.
Nos tempos de lua nova, ou de céu com nuvens daquelas chuvas brandas e que nunca cessam, sempre aparecia gente nova. Vinham nos escuros e nem sei como achavam sua gente. Assim, somados aos que nasciam daqueles que por aqui iam vivendo, o povo prosperava.
 Lugar era de paz? Pois era sim, dou garantia. Mas havia algo que desagradava demais a Nosso Senhor Jesus Cristo. É que eles desacreditavam dele. Nem se preocupavam com os encantamentos da salvação. Para aquela gente deus eram uns trazidos lá da África. Essas crenças exigiam oferendas de bichos e senhora sabe melhor que eu. O Pai dos Céus fica com muita raiva de quem maltrata suas criaturinhas.
Como costumavam sacrificar só galinhas, bodes e outros bichos assim a paciência de Deus ia se aguentando bem. Só que os pretos fugidos, vez por outra, em suas caçadas davam com canaviais e fazendas. Nessas sempre há um tanto de criação e delas não era raro que trouxessem uns bichos, não só para reproduzir e comer, como também para os presentes de sangue, aos deuses deles.
Numa dessas Josimo apareceu com um filhotinho de carneiro. Um cordeirinho ainda de mamar em teta de mãe. Foi criado assim com todo cuidado e carinho. Era o bichinho mais formoso do lugar. Animal que ficou crescido e belo. Estava já peludo de muitas lãs. 
Um dia chegou o medo. Uma preta banhava os filhos no córrego quando reparou estar sendo observada. Havia um rapaz branco e magricela, todo vestido de couro, na prontidão para enfrentar os espinheiros, espreitando da outra margem.  Juntou as crianças e rompeu correndo para casa. Relato feito e os homens desandaram em doida carreira para pegar o desgraçado. Escapou.
Foi aí que tomaram a decisão mais desastrada que podiam ter deliberado. Os deuses, os búzios lançados diziam, para que os protegessem dos brancos que ansiavam por levá-los novamente ao cativeiro, ficariam felizes demais com o sangue do cordeiro. Até hoje, senhora fizer silêncio, vai escutar o balido dele na hora da morte.
A paciência de Deus se esgotou de uma vez ao escutar aquele grito do seu bichinho. Definiu então, lá nas alturas, que iria usar o poder dos seus fiéis. Seria com os braços e as armas dos brancos que puniria aqueles hereges assassinos.
Numa manhã ventosa e feia foi dado o alerta. Havia três cabras armados, aquele magrelo da beira do riacho e mais dois, com seus cães subindo o rio das Pedras. Acorreram os homens para lá, por objetivo de não deixar que encontrassem o Quilombo.
No desfiladeiro do urubu tocaiaram os três. Um cachorro, todo castanho, fácil de ser confundido com o terreno, escapou. Fugiu correndo. Não queriam deixar rastros e cão é bicho ladino que sabe retornar pelos caminhos vindos. Apressaram-se atrás dele, mas nada de alcançá-lo. Escurecia e como viram que, vez por outra, apareciam gotas de sangue, creram que logo cairia morto na caatinga.
Pensa que cachorro morreu? Pois lhe garanto que voltou certinho para casa. Chegou no lilili de se terminarem as derradeiras forças. Na Usina de cana, aflitos pelo não retorno dos três bate mato, repararam em sua ferida e constataram ter sido obra de lança. Só podia ter sido arte de índio ou de preto fugido.
Tinham que buscar seus companheiros que jamais voltaram e as outras criações que bicho, desses assim fieis, nunca que se pode abandonar. Organizaram exército de muitos guerreiros.
Apoio das fazendas em volta fez com que os soldados passassem bastante dos trezentos. Afora a cachorrada que esta era incontável. Antes de sair rezaram o terço e cada um botou no peito a cruz.
Eram combatentes de Deus. Abençoados por Ele para resgatar os desalmados negros e suas crenças malignas. Castigá-los com os chicotes. Que aquilo servisse de aprendizado eterno. Jamais ousassem, ao menos, sonhar com nova escapada.  
O franzino mateiro que morrera com os outros dois, e que vira a preta e seus filhos, contara dos rumos do achado. Mulher com criação pequena não costuma lavar as crias longe de casa. Senhora sabe também que para ter filhos daquela idade, é porque por ali haveria de ter povoado deles, foi o que intuíram. Estava descoberto o esconderijo de tantos cativos que fugiam e deles nunca mais se sabia, desde outras eras.
Antes que chegassem os vigias já os tinham visto vindo. Batalhão que marchava em grande alarido de conversas e alegrias da cachorrada. Assustados vieram contar ao Rei deles daquele exército. A ordem foi simples.
Que não se intimidassem diante de tanta gente e armas. Os deuses estavam com eles. O sangue do cordeiro confirmara isto. Iriam vencer, mas se preciso fosse defenderiam suas terras, seus filhos e suas mulheres até a morte. A guerra foi enorme. Armas dos pretos, além de serem bem menos, eram poucas e rudimentares. A luta era desigual demais. As covardias.
Essa poeira aqui virou lama vermelha naquele dia. Os brancos não esperavam tanta resistência e ferocidade. Muitos deles pereceram. Sangue europeu e africano misturado com terra. A morte dos seus irmãos os enfureceu ainda mais. Passaram a assassinar mulheres indefesas. Nem das crianças eram capazes de livrar a cara. Não sobrou ninguém. Deus estava vingado.
Senhora agora compreende por que eu não queria vir aqui? Doutora agora já sabe de tudo. Mal aqui no trivial dos humanos Deus nem fica reparando. Esse tem todo dia. Bulir com as criaturinhas que Nosso Senhor abençoa e carrega nos ombros, traz a desgraça.
Estou cansado demais. Pesos da idade e da tristeza vêm somados.  Passamos o dia juntos a rodar, daqui para lá nesses sítios de tantas histórias. Chega de Laje da Corte. Quero ir para casa. Tem mais nada para se olhar não. Muito menos para lhe dizer. Agora é silêncio.

Autor: Fernando Cyrino - Niterói/RJ 

4 comentários:

Maria Mineira disse...

Gostei demais! Teve horas no meio do conto que vi lampejos de Guimarães Rosa. Leitura prazerosa que me prendeu atenção até o final. Parabéns Ao autor ou autora que escreveu!!!

Anônimo disse...

Daria um documentário e ninguém ia desgrudar olho. Muito envolvente, escrito com mestria. Parabéns. Marina Alves.

Anônimo disse...

Realmente daria um documentário. Eu também vi lampejos de Guimarães Rosa nesse conto. Gostei muito! Parabéns! Anajara.

Helena Frenzel disse...

Sim, lembrei da prosa de Riobaldo em Grande Sertão. Uma narrativa bem diferente das anteriores, escrita com cuidado e que prende a atenção do leitor. Gostei muito! Parabéns.