Autor: Fernando Cyrino
Senhora fica olhando para a gente assim do sertão, com essas manias de tirar recados da natureza e deve achar que somos gente boba. Povo que só entende de mato. Aqui tenho rádio e televisão. Sei do mundo. Jornal também chega, mas as letras que possuo são miúdas.
Senhora fica olhando para a gente assim do sertão, com essas manias de tirar recados da natureza e deve achar que somos gente boba. Povo que só entende de mato. Aqui tenho rádio e televisão. Sei do mundo. Jornal também chega, mas as letras que possuo são miúdas.
No
noticiário das vinte horas aparece aquela mocinha do sorriso bonito, mostrando
como será o tempo pelo Brasil afora. Acha mesmo que acredito nela? Sou muito
mais a minha reparada nas nuvens, seus desenhos e formatos. A direção do vento
e se ele vem rasteirinho por modo de levantar poeira ou, ao contrário, chega mais
alto de jeito a remexer os cabelos das mulheres.
Mire
e veja aquela tropa no céu vindo lá das bandas do oceano. Doutora olha e só vê
as graças delas de serem assim tão bonitinhas. Feitas parece que de algodão.
Pois eu não vejo essas belezas que a senhora enxerga. Sinais nelas são aziagos.
O
povo daqui se arrepia quando chegam. Vindas assim desse jeito do mar, tão
altaneiras e levezinhas de brancura, é porque não conseguiram se engravidar.
Camas delas se encontram nas lonjuras de águas profundas.
É
tudo barriga oca. No máximo carregam um uiuiui de neblina, daquelas mirradas
que deixam gotinhas em pontas de folha, mas que o chão nem sente. Incapazes
mesmo que seja de chuvisco.
Vai
ser ano de penúria aqui na roça. Nessa caderneta de apontar tudo que a gente
vai assuntando, senhora pode escrever o que lhe afirmo. Foi numa era assim,
cheinha dessas nuvens agourentas que o mal renasceu aqui na Laje da Corte.
A
dona vê as construções todas se findando. A maioria nem deixou rastro. Mato
cresceu onde eram seus pisos e alicerces. Essas que agora admira e tira
retratos, são as sobreviventes. As que pertenceram aos brancos. Moradores foram
gentes poderosas que fizeram e aconteceram por essas baixadas afora.
Imagina
que tem gente que pensa que aqui se chama assim por conta de que algum tal,
quem sabe um poderoso português, aqui construiu seu castelo, que ninguém nunca
soube mostrar dele, nem um cascalho que fosse.
Esse
tal, disseram ter sido visconde vindo para cá meio fugido, por conta de roubos
na corte do Rio de Janeiro. Chegou com sua parentalha e construiu palácio. Povo
é meio besta e até acha que visconde é capaz de ter corte. Essa raça de nobreza
não era possuidora de grande valor nos castelos, senhora sabe? Algum tabaréu
joga conversa fora e a bobagem vira o real. Pode isto?
Laje
da Corte é porque cá, nos Setecentos, foi sítio de quilombo. Terra de pretos
fugidos das malvadezas dos patrões e que aqui constituíram seu lugar de
liberdade. Era gente em sua grande maioria vinda do Congo e de lá tinham trazido
seus costumes e religiões.
Madama
acha que eles eram assim todos iguaizinhos? Equivoca-se demais. Tinham degraus
de importância entre eles. Viajaram todos em porões de navios, mas mesmo lá nos
fundos, havia uns que respeitavam mais e outros menos. Pensam que eles não
possuíam, mesmo nessas bandas do Brasil, os seus reis, suas rainhas, seus
príncipes, duques e condes?
E
foi exato aqui, meu pai me contou que o pai dele lhe tinha afiançado, que o
velho dele lhe tinha dito nas penumbras dos passados. Palavrórios que vem
viajando desde a época da primeira tragédia. Exato aqui, nesses chãos, moravam
os tais Rei e Rainha Congo.
Naquela
laje bonita de pedra, lá no alto, era que abençoavam seu povo. Diziam-lhes do
que deviam fazer para conviver bem e ensinavam para eles as táticas de guerra.
Necessárias para que se protegessem dos capitães do mato. Aqueles malvados
pagos pelos fazendeiros, com missão de encontrar e devolver à escravidão, os
negros escapados das fazendas de cana.
Senhora
disse que falei de primeira tragédia e ficou curiosa. Quer saber mais sobre
ela? Relatar estes sucessos nos longínquos da terra vai ser importante para seu
entendimento. Tratar deles é preparar o seu coração para compreender a segunda.
Essa que trouxe a dona aqui para os nossos sertões.
Relutei
em sair do trivial da minha casa, tão distante daqui, para vir até essas feias
ruínas. A doutora se recorda bem do tanto que insistiu? Repara não que meus
olhos vazam. Chorar homem não deve de. Mas aqui, debaixo da terra que pisamos,
estão os ossos do meu povo. Se não foi comido por bicho, quando minha mãe
acabou de curar meu umbigo, ele também se misturou nessas poeiras. Um tantinho
de mim aqui ainda vai existindo.
Tergiverso,
me desculpe. Aprendi desde menino a manejar bicho volteando, para que se
cansasse e assim compreendesse minha autoridade. Duas desgraças, distantes cada
uma para mais de duzentos anos, irromperam por aqui. Pensa a dona que acabou?
Por isto todo mundo foi embora. Agora vivem nesses sítios essa meia dúzia de
gatos pingados. Não era povo de existir conosco antes dos acontecidos.
Povo
que veio depois e vai sobrevivendo. Creem que vão endinheirar-se. Falam até que
o Senhor abençoa os enricados. Terrenos sem valor nenhum esses tantos. Tomaram
posse e só tiveram que ajeitar as casas que já iam se transformando em
taperas.
Quando
soube que por aqui existiam, vim assuntar com eles dos ocorridos e do que virá.
Deram-me ouvido nenhum não. Eles são Bíblia. Renegaram a Santa Igreja Católica
Apostólica Romana e acreditam que Deus vai protegê-los quando o demônio acordar
de novo. Levaram-me a serio? Mangaram de mim.
Agora
a dona sorri ao conhecer que existe mais torresmo debaixo deste meu angu. Sim,
as desventuras não estão todas cumpridas. Ainda há o que irá chegar e a maldade
será muito maior. Senhora já ouviu falar dos quatro cavaleiros? Aqueles do
Livro do Apocalipse? Pois começará por essas bandas a cavalgada perversa deles.
Mas dessas coisas do adiante não desejo lhe assuntar. Tenho pavores e me
persigno. Medos demais.
Trato
do fim sem lidar com o começo. Misturo os pensamentos e posso até me perder
nessas veredas escuras. Falo de mim. Cabeça da senhora é mais organizada. Cheia
das inteligências adquiridas nos livros e bancos de escola. Faculdade é fineza
que respeito.
Poderia
contar puxando qualquer barbante, ou ficar em roda qual redemoinho e ainda me
compreenderia. Receios são meus. Tem passarinho que aprecia fazer curva no voo.
Há outros que miram um ponto em frente e partem. Sou desses.
Cachoeira
cai é devagar? Despenca de uma vez, pra lá embaixo formar um lago. Pode ser dos
minguados, mas haverá ao pé de cada uma delas sempre esse resguardo das águas.
Parece que, assustadas por terem descido tão depressa, precisam de tempo para
se recompor e continuar rompendo avante.
Ruína
daqui também se deu de uma vez. Foi na seca do Cinquenta e Seis. Era homem
feito. Viúvo de Domingas estava casado com Das Dores. Moça mais nova e vistosa
que só ela. Morreu nove meses depois do parto de João Batista e ninguém me tira
da ideia, que foi já por conta da desdita que ela se finou.
O
menino, nome de João, lhe havia contado, também não vingou. Morreu no seio da
desventura que vou lhe narrar. Sangue meu tem mais nenhum, que eu saiba,
viajando nesse mundão de Deus. Tenho sorte com filho e mulher não. Amasiei
algumas vezes, mas sem ter sido feliz. Depois, na precisão das carnes buscava
alguma necessitada de dinheiros. Essas que as pessoas chamam de da vida.
De
uns anos para cá os desejos arrefeceram e vivo como Deus manda, lá sozinho, no
meu barraco. Tenho dinheiro mensal do governo. Todo dia dez viajo sessenta
quilômetros. Vou ao banco pegar o que é meu. Dá para comprar uns trens e os
remédios.
Seca
vira desespero é quando as águas todas somem. Primeiro o rio vai se tornando
mirrado. Emagrece rápido e enfim fica só aquele areal. Uns tempos ainda e a
gente cava. Não é que lá no fundo a danada da água tinha ficado oculta?
Chega
a hora em que nem essa tem mais. Ainda haverá de ter uns restinhos nos
derradeiros dos açudes. É o tempo de beber com os bichos. É boi, mulher,
cachorro, menino, porco, homem, galinha, cabrito, pato. Tudo junto e misturado
indo se servir no lamaçal.
Os
caminhões do governo, bem antes da ocorrência dessa última hora, já chegaram
trazendo o adjutório da bendita água. Naquele tempo não era raro que faltassem.
As políticas podiam fazer com que viessem ou que sumissem. O povo por aqui
sofre.
Foi
durante a seca, mas ela não pode levar a culpa. Era somente mais um tipo de
legume jogado no tacho do cozido. Este era muito maior. O padre louro, daqueles
de ficar vermelho com tempinho miúdo no sol, chegara faz pouco tempo do
estrangeiro. Vinha todo último domingo do mês, montado em lombo de burro,
celebrar as liturgias.
Homem
rude de não falar uma palavra da nossa língua. Incapaz de sorrir, nem que fosse
para criança dessas ainda de poucos dentes. Conversas dele eram nos versos
embolados de não se compreender o que desejava. Bom de a gente se confessar,
isso ele era. Não entendia os nossos pecados e nem compreendíamos as penitências
dadas.
Missa
minguava a olhos vistos. O povo foi enjoando daquele jeito de não se entender
as coisas. Teve um domingo em que só estavam na Igreja o sacristão Genésio,
dois coroinhas - que menino aprecia demais essa função - e uma velha surda.
Genésio
era meu pai. Ao recordar tal fato ele dizia do quanto o padre bufava de ódio na
sacristia. Falou com ele, dedo em riste, umas tantas coisas que não teve ideia
de quais foram e partiu. Nunca mais retornou a Laje da Corte e muito menos
enviou pároco substituto.
Papai
que não entendia dessas línguas dos forasteiros, foi homem dos mais sabidos. O
que fez foi traduzir aquelas palavras de ira, tão incompreensíveis. Estava
óbvio que ele esconjurava o lugar. Duas vezes pelo menos, me afiançava, o
sacerdote falou de terrenos arrasados. Daí a depreender que o lugar iria
desandar, tinha sido mera questão de tirocínio.
Relatei
essas coisas olhando forte a senhora. Irá me desculpar por mirar assim potente
seu rosto, mas precisava saber se estava mesmo acreditando no que aprendi do
meu velho. O porquê da minha dúvida? É que tem gente que ri, caçoando que de
maneira alguma um analfabeto seria capaz de traduzir, uma palavra que fosse de
gringos.
Senhora
crê em mim ou nesses incrédulos? Precisa me dar resposta não. Já me arrependi
de falar assim. A dona há de me perdoar essa forma desarrazoada de dizer as
coisas e de mirar os outros, direto, em seus olhos.
Padre
que se foi para jamais retornar. Dinheiro que não visitou os bolsos de mais
nenhum dos que ali tinham suas casas. Tudo passou a dar para trás. Era prejuízo
em cima de mais prejuízo. Gente rica ficou pobre e os pobres se tornaram
miseráveis. Muito mais que a seca veio a fome.
Tentou-se
de tudo. Mudanças de lavoura, criação de cabras, galinhas capote, aquelas de
angola. Até petróleo houve gente buscando. Para sobreviver havia a precisão
imediata de se arrumar outro ganhame. Mesmo que não escorressem os cobres, que
pingasse de vez em quando, para que a vida pudesse seguir, severina, como
sempre foi. Mas este era apenas o começo do rolar das pedras pela ribanceira
abaixo.
Depois
das chuvas, que quase não nos visitaram, veio a malária. Praticamente todo
mundo ganhou a febre e uns tantos se foram, vítimas dela. Ainda quando o
mosquito se acostumava de vez com o sangue da gente, chegou a cólera. Morreu
mais gente da diarreia branca.
Até
aí, negócios falidos, malária e cólera, era tudo parte da existência difícil a
qual todo mundo estava acostumado. Povo começou a desconfiar mesmo, que meu
velho tinha razão nas traduções dele, foi quando aconteceu a invasão das
pererecas. Daquelas pequeninas, parecendo soltar gosma pelas patinhas
pegajosas. Joãozinho, meu filho, senhora já é sabedora, que Deus o tenha, não
brincou com elas. Partiu para o céu nas febres da maleita, a tal sezão.
No
início foi tudo grande festança. Meninos juntando as sapinhas em gaiola de
grade fina para tiziu. Passados uns dias veio o incômodo. Não houve cristão que conseguisse permanecer
distante delas. Invadiram as casas. As bichinhas saltavam em cima da gente na
cama, viviam aos milhares na cozinha, caiam no prato de comida. Até ao se
deitar na rede se descobria haver delas por debaixo do corpo.
E
o de noite? Aí era o pior. É que elas tinham um coachar irritante e fino.
Semelhança assim com um tipo diferente de assobio de quem sente a falta de
alguns dentes. Senhora já imaginou milhões delas cantando ao mesmo tempo?
Ninguém conseguia mais dormir.
Teve
um domingo que todo mundo combinou de matar perereca. Foram sacos e sacos delas
queimados em grandes fogueiras e nos fornos de carvão. E diminuiu alguma pelo
menos? Impressão que tivemos foi de que elas haviam aumentado.
Da
mesma maneira que surgiram um dia, sem mais nem menos, em outro foram embora.
Só que deixaram embaixadores mais terríveis ainda. Uns mosquitinhos pequeninos
de bunda branca, aos quais as gentes davam o nome de pium. A picada de um deles
dói e deixa coceira que pode até ferir.
Acaso
viessem só uma meia dúzia a picar para chupar o sangue, se cantaria as aleluias
ao Senhor. Eram miríades deles a nos desesperar. Tinham hora marcada. Picavam
das quatro da tarde às sete da noite, mas essas três horas pareciam durar uma
eternidade.
Todo
mundo passou a usar camisa de manga comprida e enrolar nas mãos panos para se
proteger. Ficar dentro de casa, a senhora me pergunta se resolvia? Respondo que
não. As mães deles não lhes deram educação. Não pediam permissão para entrar.
Qualquer canto era lugar para azucrinarem as criaturas de pele fina.
A
mosquitada durou o verão todo. Foi vindo o inverno e a criançada começou a
tossir. É gripe? Trata-se de pneumonia? A benzedeira não tinha mais tempo para
cuidar das suas tralhas. Era um tal de abençoar criança o dia todo que cansava
demais. É que as mães ficavam com muito medo de perder suas crias.
Não
havia criança que passasse ao largo da doença. Foi assim até que Jorginho de
Zenaide, no meio da tosse, cuspiu um catarro avermelhado. Parece que tinha sido
sinal de alarme e em poucos dias, a criançada estava toda vertendo sangue pela
boca. A malvada da tuberculose atacava sem misericórdia. Um tanto de anjinhos,
filhotes dela, estão ali onde era o cemitério.
Nessas
horas coveiro faz festa. Senhora sabe que ele cobra para cavar a sepultura e
enterrar? E se a família desejar que capine e plante umas florezinhas depois,
também precisa ofertar dinheiro. E esse
o povo já estava esquecendo da cor que ele era.
A
religião então foi voltando. Deus não somente tinha largado Laje da Corte.
Fizera muito pior. Entregara aquela gente que abandonara o vigário ao demônio.
Tinha chegado a hora de pedir perdão e voltar, contritos, aos bancos da capela.
Havia que se lançar, sem dó nem piedade, os joelhos no chão.
Mas
aí quem disse que se conseguisse reverendo ou freira para animar e conduzir as
rezas? Ninguém estava disponível para acudir os lajenses apoiando-os na
obtenção do perdão dos céus, pelo mal feito ao gringo. Com enviado de Deus não
se brinca, todos estavam descobrindo agora.
Fossem
somente essas pragas, que Deus seja louvado. Mas vieram sete. Não é que a terra
também se vingava em nome do tal cura? Zico de Donana falou que as pessoas que
têm força para o mal feito, acaso cuspam no chão, limpando a boca das palavras
imundas, em seguida ao que desejaram de ruim, a peste vai junto à saliva e a
terra, no em volta de onde o cuspe cair, também deixará de gerar vida.
Vira
solo morto, falecido, defunto. A senhora veja que desespero. Nem maxixe e
tomate miudinho, que eram mimos de horta e que nasciam do nada, sem ninguém ter
botado semente, eram capazes de presentear seus frutos. Não temos dúvida de que
o desgraçado do padre escarrou antes de tomar a estrada.
Quem
poderia viver aqui? Contratamos um caminhão e fomos de pau de arara para o Sul.
A Terra Prometida de São Paulo. Viagem mais triste que essa jamais teve. Todos
tinham perdido gente querida nas desgraças de Laje da Corte. Fiquei por lá doze
anos.
Comecei
como ajudante de pedreiro e terminei como porteiro de prédio. Um todo azul, dos
mais bonitos e chiques de um lugar que se chama Morumbi. Senhora conhece? Só
voltei para o sertão depois de velho.
Prometi
que ia contar os eventos em linha reta. Saindo daqui e indo para lá, mas fiz
diferente. A dona haverá de me perdoar de novo. Acho que nossa visita às minhas
saudades e angústias, prejudica a organização dos meus juízos. Comecei pelo
meio, não é mesmo?
Pois
então termino narrando a primeira desgraça, desse lugar maldito e pelo qual meu
apreço é tão grande. Certeza de detalhes, quem há de afiançar tal se assina em
documento? Há coisas que se sabe, tem-se a impressão, desde o nosso entender de
se ser humano. Tais quais aquelas marcas de ferro do lombo da novilha, nossa
pele está marcada por elas.
Pois
senhora já sabe que isto aqui foi terra de pretos? Pois sim, não lhe tinha
dito? Viveram na tranquilidade por várias gerações. Tomavam seus cuidados. A
existência era arriscada e sempre tinha gente de sentinela a vigiar os morros e
estradas em torno.
Nos
tempos de lua nova, ou de céu com nuvens daquelas chuvas brandas e que nunca
cessam, sempre aparecia gente nova. Vinham nos escuros e nem sei como achavam
sua gente. Assim, somados aos que nasciam daqueles que por aqui iam vivendo, o
povo prosperava.
Lugar era de paz? Pois era sim, dou garantia.
Mas havia algo que desagradava demais a Nosso Senhor Jesus Cristo. É que eles
desacreditavam dele. Nem se preocupavam com os encantamentos da salvação. Para
aquela gente deus eram uns trazidos lá da África. Essas crenças exigiam
oferendas de bichos e senhora sabe melhor que eu. O Pai dos Céus fica com muita
raiva de quem maltrata suas criaturinhas.
Como
costumavam sacrificar só galinhas, bodes e outros bichos assim a paciência de
Deus ia se aguentando bem. Só que os pretos fugidos, vez por outra, em suas
caçadas davam com canaviais e fazendas. Nessas sempre há um tanto de criação e
delas não era raro que trouxessem uns bichos, não só para reproduzir e comer,
como também para os presentes de sangue, aos deuses deles.
Numa
dessas Josimo apareceu com um filhotinho de carneiro. Um cordeirinho ainda de
mamar em teta de mãe. Foi criado assim com todo cuidado e carinho. Era o
bichinho mais formoso do lugar. Animal que ficou crescido e belo. Estava já
peludo de muitas lãs.
Um
dia chegou o medo. Uma preta banhava os filhos no córrego quando reparou estar
sendo observada. Havia um rapaz branco e magricela, todo vestido de couro, na
prontidão para enfrentar os espinheiros, espreitando da outra margem. Juntou as crianças e rompeu correndo para
casa. Relato feito e os homens desandaram em doida carreira para pegar o
desgraçado. Escapou.
Foi
aí que tomaram a decisão mais desastrada que podiam ter deliberado. Os deuses,
os búzios lançados diziam, para que os protegessem dos brancos que ansiavam por
levá-los novamente ao cativeiro, ficariam felizes demais com o sangue do
cordeiro. Até hoje, senhora fizer silêncio, vai escutar o balido dele na hora
da morte.
A
paciência de Deus se esgotou de uma vez ao escutar aquele grito do seu
bichinho. Definiu então, lá nas alturas, que iria usar o poder dos seus fiéis.
Seria com os braços e as armas dos brancos que puniria aqueles hereges
assassinos.
Numa
manhã ventosa e feia foi dado o alerta. Havia três cabras armados, aquele
magrelo da beira do riacho e mais dois, com seus cães subindo o rio das Pedras.
Acorreram os homens para lá, por objetivo de não deixar que encontrassem o
Quilombo.
No
desfiladeiro do urubu tocaiaram os três. Um cachorro, todo castanho, fácil de
ser confundido com o terreno, escapou. Fugiu correndo. Não queriam deixar
rastros e cão é bicho ladino que sabe retornar pelos caminhos vindos.
Apressaram-se atrás dele, mas nada de alcançá-lo. Escurecia e como viram que,
vez por outra, apareciam gotas de sangue, creram que logo cairia morto na
caatinga.
Pensa
que cachorro morreu? Pois lhe garanto que voltou certinho para casa. Chegou no
lilili de se terminarem as derradeiras forças. Na Usina de cana, aflitos pelo
não retorno dos três bate mato, repararam em sua ferida e constataram ter sido
obra de lança. Só podia ter sido arte de índio ou de preto fugido.
Tinham
que buscar seus companheiros que jamais voltaram e as outras criações que
bicho, desses assim fieis, nunca que se pode abandonar. Organizaram exército de
muitos guerreiros.
Apoio
das fazendas em volta fez com que os soldados passassem bastante dos trezentos.
Afora a cachorrada que esta era incontável. Antes de sair rezaram o terço e
cada um botou no peito a cruz.
Eram
combatentes de Deus. Abençoados por Ele para resgatar os desalmados negros e
suas crenças malignas. Castigá-los com os chicotes. Que aquilo servisse de aprendizado
eterno. Jamais ousassem, ao menos, sonhar com nova escapada.
O
franzino mateiro que morrera com os outros dois, e que vira a preta e seus
filhos, contara dos rumos do achado. Mulher com criação pequena não costuma
lavar as crias longe de casa. Senhora sabe também que para ter filhos daquela
idade, é porque por ali haveria de ter povoado deles, foi o que intuíram.
Estava descoberto o esconderijo de tantos cativos que fugiam e deles nunca mais
se sabia, desde outras eras.
Antes
que chegassem os vigias já os tinham visto vindo. Batalhão que marchava em
grande alarido de conversas e alegrias da cachorrada. Assustados vieram contar
ao Rei deles daquele exército. A ordem foi simples.
Que
não se intimidassem diante de tanta gente e armas. Os deuses estavam com eles.
O sangue do cordeiro confirmara isto. Iriam vencer, mas se preciso fosse
defenderiam suas terras, seus filhos e suas mulheres até a morte. A guerra foi
enorme. Armas dos pretos, além de serem bem menos, eram poucas e rudimentares.
A luta era desigual demais. As covardias.
Essa
poeira aqui virou lama vermelha naquele dia. Os brancos não esperavam tanta
resistência e ferocidade. Muitos deles pereceram. Sangue europeu e africano
misturado com terra. A morte dos seus irmãos os enfureceu ainda mais. Passaram
a assassinar mulheres indefesas. Nem das crianças eram capazes de livrar a
cara. Não sobrou ninguém. Deus estava vingado.
Senhora
agora compreende por que eu não queria vir aqui? Doutora agora já sabe de tudo.
Mal aqui no trivial dos humanos Deus nem fica reparando. Esse tem todo dia.
Bulir com as criaturinhas que Nosso Senhor abençoa e carrega nos ombros, traz a
desgraça.
Estou
cansado demais. Pesos da idade e da tristeza vêm somados. Passamos o dia juntos a rodar, daqui para lá
nesses sítios de tantas histórias. Chega de Laje da Corte. Quero ir para casa.
Tem mais nada para se olhar não. Muito menos para lhe dizer. Agora é
silêncio. Autor: Fernando Cyrino - Niterói/RJ
4 comentários:
Gostei demais! Teve horas no meio do conto que vi lampejos de Guimarães Rosa. Leitura prazerosa que me prendeu atenção até o final. Parabéns Ao autor ou autora que escreveu!!!
Daria um documentário e ninguém ia desgrudar olho. Muito envolvente, escrito com mestria. Parabéns. Marina Alves.
Realmente daria um documentário. Eu também vi lampejos de Guimarães Rosa nesse conto. Gostei muito! Parabéns! Anajara.
Sim, lembrei da prosa de Riobaldo em Grande Sertão. Uma narrativa bem diferente das anteriores, escrita com cuidado e que prende a atenção do leitor. Gostei muito! Parabéns.
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