sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Na Rota do Caroá

Autora: Marina Alves

Última noite em Tabira.  Antes de dormir Isabel acertou com as companheiras de viagem, Mônica e Alice, o horário para seguirem viagem, no dia seguinte: “Melhor que a gente saia antes do meio-dia. São centenas de quilômetros pela frente e não é bom que a noite nos pegue na estrada”. As ponderações da moça tinham suas razões: a rodovia federal que teriam de percorrer de volta para casa era conhecida pelo tráfego intenso e o alto índice de acidentes. E caso tivessem algum imprevisto, à noite tudo seria mais difícil.
Tudo combinado. Antes do meio-dia as três amigas deveriam dizer adeus ao último ponto da viagem de dez dias e retornar ao Cedro, cidade em que moravam. Mas no dia seguinte... Os sábios conselhos de Isabel caíram por terra: Mônica cismou de passar numa feirinha de artesanatos. Como é que alguém volta de uma viagem de dez dias, de mãos abanando? Não, não e não! Ia comprar algumas coisinhas. E Isabel sabia: uma feira para Mônica era zona de perigo. Ela jamais sairia de lá em menos de três horas, pechinchando preços e enchendo sacolas. Não deu outra. Quando saíram de Tabira, o sol já descambava no horizonte.
Àquela hora, a rodovia formigava. Era tarde de domingo e, com certeza, o mundo inteiro tinha resolvido ir pra algum lugar. O rádio tocava Zé Ramalho e Mônica tamborilava os dedos no volante acompanhando o ritmo da música. No banco da frente, ao lado dela, Alice cochilava. Atrás, olhos grudados no horizonte, Isabel tentava calcular o tempo de luz que ainda teriam. Pouquíssimo tempo...  O resto era com Deus!
Depois da parada no “Pouso do viajante”, rumo ao Norte, o susto: Mônica avisou que estavam na rota errada. Errada? Como assim? As placas comprovavam. As cidades indicadas  não eram as da  rota de volta. O trevo! Tinha sido lá o desvio! Alice, já acordada, tentava se orientar. Isabel procurava manter a calma, amenizar a tensão. Pronto! Aquele era um dos imprevistos que temia. E o pior: a estrada inteira faiscava em faróis acesos. A noite tinha caído densa e negra como nunca!
Alice sugeriu que retornassem ao ponto de desvio. Mônica discordou. Achava que o mais sensato seria seguir em frente. Com certeza haveria outro trajeto, mesmo que mais longo. O carro rodava agora num trecho tranquilo, sem ultrapassagens ou cruzamentos com outros veículos. Que lugar seria aquele? Isabel notou um detalhe que preferiu não comentar: as placas haviam sumido por completo. Estavam completamente sem sinais. À volta, apenas a noite fechada, o asfalto sem fim e um silêncio de enlouquecer qualquer um. Uma tensão quase palpável se fez entre elas: ali estavam, três amigas em passeio pelo Nordeste, numa aventura inusitada... E assustadora. Consultar o mapa! Foi a ideia de Alice. E cadê o mapa? Ninguém sabia que rumo tinha tomado. O celular! Alguma informação, quem sabe... Mas, para a surpresa de todas, os telefones só faziam chiar, nada mais...
Subitamente, luzes ao longe! Que  alívio! Havia vida por ali. Mônica tomou uma estradinha vicinal em direção ao ponto luminoso. Quem sabe alguém pudesse lhes dar outra luz: dizer onde estavam. Alguns quilômetros adiante, o inesperado: os faróis do carro incidiram sobre um lugarejo em ruínas! Meu Deus, que lugar seria aquele? E a luz que tinham visto? Por ali não havia luz alguma, só escombros de velhas construções, mergulhados na escuridão noturna. De vivalma, nem sinal! E o pior! Mônica avisou que teriam de passar a noite, ali mesmo. O combustível estava na reserva, seria o mais sensato. Apavorante! Mas nada a fazer senão tentar dormir.
Aos primeiros clarões de sol... O povoado-fantasma! Incrível o que as moças tinham diante dos olhos: cobertos pela hera e pelo mato, restos de antigas edificações. Tudo cheirando à solidão e desolamento... Isabel entrou sozinha no que parecia ter sido uma escola. Sobre um amontoado de pedras, o objeto: uma pequena caixa de madeira! Pelas bordas entreviu pontas de papel amarelecido pelo tempo. Seria uma carta? Rapidamente, a moça a enfiou no bolso do casaco.
À luz do dia, nenhum gato é pardo e achar os caminhos é bem mais fácil. Retomando a estrada principal, depois de uma distância que parecia não ter fim, as viajantes deram com um posto de combustível. Mônica abasteceu e pediu informações. Ufa! Apesar de estarem numa rota três vezes mais longa, o Cedro existia! Aquilo era, no mínimo, reconfortante! O novo trajeto até o destino de origem foi detalhadamente explicado pelo homem que as atendeu. De alma nova, prosseguiram viagem.
Pelo começo da tarde, as primeiras casas do Cedro! Ah, o aconchego do lar! Isabel fechou os olhos e respirou fundo: tudo tinha acabado bem. Mais tarde,  já no conforto da cama, a moça dedicou-se ao que a consumia de curiosidade: o papel no fundo do bolso do casaco. Enfim, tinha nas mãos a carta! Quem a teria escrito? Quem a teria deixado naquela escola em ruínas? Com que intenção tinha sido deixada lá. Pôs-se a ler:
“Meu nome é Dolores da Cunha, mais conhecida, professora Dorinha. Vim lecionar  no Arraial do Caroá, contratada pelo Coronel Fabriciano Pompeia, Rei do Caroá e de todas estas terras. Homem temido pelo seu temperamento explosivo e vingativo, o coronel deixou muitas desavenças neste arraial que  já viveu seus tempos de glória. No começo de tudo, veio gente de longe para o cultivo e beneficiamento do caroá, o que rendeu ao coronel, fortuna e poder em toda essa região. Todas as ruínas deste lugar, em outros dias, já foram escola, capela, posto de gasolina, venda, bar e restaurante. Inesquecível a grande feira aos domingos! Hoje, quem vê todo esse abandono nem acredita...”
“O casarão mais suntuoso, agora também uma tapera, era habitado pela família do coronel. Ali, muitas vezes, ele escondeu dos “macacos”, Lampião e seu bando. Foi ali também, que numa tarde de outono, quando fui assinar contrato, conheci Armandinho, filho único do coronel. Foi amor à primeira vista. Mas é claro que não podia dar certo. O moço rico e a professorinha? Jamais! Descoberto o romance, o coronel fez tremeram as Terras do Caroá! Os jagunços, a mando do tirano, invadiram a escola. Sem dó, nem compaixão me arrastaram com minhas tralhas, me soltaram à margem da rodovia, largada à própria sorte. Inconformado, Armandinho montou seu cavalo e saiu em disparada. Meu pobre amor ia ao meu encalço. Mas na tresloucada corrida, a queda fatal! Armandinho não resistiu. Morreu ali mesmo, no meio da estrada.”
“Tragédia acontecida, o coronel caiu em desespero, num arrependimento tardio: Armandinho não voltaria jamais! Tomado pelo desgosto, o velho se entregou à bebida. Dia e noite, no Catimbau! De lá só saía carregado pelos capangas. Declinaram os negócios. Sem o comando do patrão, o reinado dos Pompeias entrou em franca decadência. Encurralado, cheio de dívidas, o Rei selou seu próprio fim, num último copo... Desta vez de estricnina. Morreu estrebuchando, numa mesa do Catimbau. Era também o fim do  Arraial do Caroá. O povo debandou, o abandono tomou conta de tudo. E hoje é só essa desolação que se vê nesse amaldiçoado lugar, perdido no tempo, onde nada mais há de prosperar...”
“Moro no Recife. Estou velha e só. Sobrevivo modestamente do meu parco salário de professora aposentada, num casebre da Rua Gama. Jurei amor a Armandinho. De vez em quando venho aqui, reviver neste lúgubre cenário nossa eterna história de amor. Hoje, deixo também esta carta, para o caso de  alguém que por aqui passe, querer saber um pouquinho da grande felicidade e da cruel desgraça que vivi neste lugar, de nome Arraial do Caroá...”
Isabel dobrou com emoção, a carta de Dolores... Não iria contar o segredo a ninguém, nem mesmo à Mônica e Alice. Guardaria para si a impressionante história de uma tragédia de amor e dor,  perdida no tempo e nas lembranças de certo lugar-fantasma. Escondeu no cofre o papel amarelado e um estranho desejo lhe tomou: voltar ao Arraial do Caroá. Mas sabia que não iria: algo lhe dizia que jamais encontraria o caminho, uma segunda vez...


Autora: Marina Alves - Lagoa da Prata/MG

Página da autora:

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Publicação autorizada pela autora

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