terça-feira, 9 de dezembro de 2014

A quinzena do autor: Marina Alves

Autora: Marina Alves


“Agora é Nóis!”

—Oi, amor, por favor, não desliga...
—...
— Eu sei que cê tá aí, Mônica... Por que cê não fala nada?
— ...
—Pois é, Mônica, emburrar não resolve nada, mas cê sempre faz isso quando a gente briga...
—...
— Tá, a gente não tá brigado... Tá terminado. Mesmo assim, eu quero falar.
—...
— Mônica, o que você viu lá no bar não era o que você viu...
—...
— Eu tava te esperando lá no “Agora é Nóis”, pedi uma cerveja... Aquela morena chegou e foi sentando.
—...
— É sério, Mônica! Eu tô imaginando a cara que cê tá fazendo aí, mas foi ISS,  amor!
—...
— Aí, deu azar, cê chegou justo na hora que ela pediu pra tomar um copo e...
— ...
— E... Quê que eu podia fazer, Mônica? Me diz? Falar que não ia dar?
—...
— Cê tá emburrada, melhor... Tá terminada, Mônica, mas isso não pode ficar assim...
— ...
— Amor, fala comigo... Vamos acabar logo com isso, Mônica!
—...
—Pensa bem, meu bem, a gente já tá com tudo pronto pra casar...
—...
— Mônica, pensa direito, nossa casa tá pronta, data marcada.
—...
— Cê sabe uma coisa que ODEIO em você, Mônica Isabel?
—...
— É essa sua frieza! Essa sua capacidade de me irritar com seu silêncio! Ahhhhhhhhh!
—...
— Toda vez é isso! Cê me tira do sério, sabia?
—...
— Na verdade, não sei nem porque tô ligando! Eu sou mesmo um otário!
—...
—MÔNICA!!!
—...
—Fala alguma coisa!
— Falo! Eu não sou a Mônica! Eu sou a Clotilde!
— Clotilde? Eu não tô falando no 1179?
—Tá falando no 9711... Mas escuta, eu também terminei o noivado na semana passada...
—É?
— É. Que tal uma cerveja lá no “Agora é Nóis”?  Eu sei onde fica...



Macacão de Oncinha (“Agora é Nóis”- parte 2)


— Clotilde, eu tô ligando pra gente conversar...
—...
— Cê taí, Clotilde?
—...
— Clô, não faz isso, amor, fala comigo... Admito, eu fui grosso, insensível!
—...
— Ô bem, eu ando nervoso... Lá no serviço é só problema, já te contei, né?
—...
— Só problema! E o Cruzeiro ainda leva aquela surra em campo, quem aguenta?
—...
— Tá bom, não quer falar, né? Mas cê tem que ser mais compreensiva...
—...
— Desemburra, eu não posso te dar o macacão de oncinha agora...
—...
— Com o décimo terceiro eu dou... Pode ser no décimo terceiro?
—...
— Nem no décimo, Clô? Pelamordedeus!!
—...
— Clozinha! Mês passado eu dei o salto XV, o macacão não pode esperar o décimo?
—...
— Por isso que o amor acaba... E tudo isso por causa de um macacão de oncinha!
—...
—Três anos, tô cansando! Muda seu jeito, Clô!
—...
— Cê tem um grande defeito, viu?
—...
— Ué, não vai perguntar qual é? Eu falo! Interesseira!
—...
— Só isso, não! Artificial!
—...
— Sem conteúdo!
—...
—Ranzinza!
—...
— Frívola!
—...
— Medíocre!
—...
— Cê não vai falar nada?
— Vou, eu vou falar! Aqui é a sua ESPOSA! Cê tá ligando é aqui em casa! Cachorro, safado, sem-vergonha! Pisou nessa casa, cê é um homem MORTO! Vem sabendo, viu?
— MÔNICA!



Você Tem WhatsApp?


Outro dia, na volta de uma viagem, meu celular deu de mostrar uma mensagem esquisita, dizendo que o chip não estava nele. E é claro que não era verdade, pois era só abrir o compartimento do cartãozinho e lá estava ele no lugarzinho de sempre. Levei-o para checar o problema. A moça, muito tranquilamente, explicou que era normal. Perguntou por onde eu tinha andado. Falei que era lá pros lados da Bahia. E ela reafirmou: “Você foi longe, saiu de Minas. É coisa da operadora. Com uns três dias tudo fica ok!”. Confesso que achei aquilo meio esquisito, mas se a especialista falou, então era, né? Ok! Voltei pra casa pra esperar mais dois dias, só que o cartão não deu sinal de vida. E como começou a tocar umas musiquinhas não muito usuais e acender luzinhas no meio da noite, resolvi que era hora de trocar de aparelho.

Vamos trocar o celular! E eu já sabia que ia ter problemas, pois queria um aparelho que se parecesse com o meu. Pretinho, pequeno, que desse conta apenas do básico: fazer e receber chamadas e, muito de vez em quando, em caso de vida ou morte, enviar umas mensagens — ou torpedos — como se diz modernamente. Por quê? Porque não gosto de celular, uso apenas quando a coisa não tem mais jeito. Portanto, o que eu precisava era um celular totalmente fora do tempo, fora do espaço e fora da moda. Será que ia achar?

Nas lojas em que entrei me vieram com mil modelos de última geração... Na verdade, minicomputadores que quase medem a respiração da pessoa. As vendedoras, querendo me seduzir, se punham a desfiar as mil e uma vantagens e modernidades das maquininhas, umas coisas deslumbrantes que fica até difícil acreditar. Aplicativos que permitem uma conexão total com o Planeta inteiro, e se bobear até com outras galáxias, imagina! Mas, não! Não era aquilo que eu estava querendo. Eu queria apenas algo que me salvasse numa situação de perigo. Numa selva, por exemplo, quando todas as ligações com o mundo estivessem cortadas — isto, se numa selva pegar sinal, porque as operadoras, me parecem nem sempre acompanham a velocidade da informação...

Não consegui o que queria. Uma loja ainda tinha um exemplar da idade da pedra como era de meu desejo. Mas o danado, pra meu azar, estava estragado também. Sem escolha, tive que ficar com um modelo mais ou menos: nem tão arcaico, nem tão moderno. Meio descontente, mas sem ter o que mais fazer, adquiri meu novo apetrecho tecnológico e tenho certeza de que me será muito útil para o que preciso.

Em plena era digital e da tecnologia, não é que eu ignore as inovações que a todo dia invadem o mundo contemporâneo, gosto muito de ler sobre o assunto, até pra acompanhar o que anda acontecendo, mas penso sinceramente que as pessoas estão perdendo um pouco do senso crítico diante destes brinquedinhos sedutores que cada vez mais tomam conta de suas vidas. Hoje em dia está difícil até manter uma conversa saudável. Ninguém mais presta atenção em nada. O tempo inteiro são as mensagens do whatsApp e os dedos deslizando freneticamente pelas telas dos celulares, nas atualizações das redes sociais.

Na volta de minha viagem, chamou-me a atenção o silêncio entre os passageiros do ônibus. Como era noite e estava escuro, só se via os reflexos das luzes azuladas dos celulares ligados. Todo mundo conectado ao mundo virtual. E fiquei pensando: bons tempos aqueles em que uma viagem de ônibus era um bom motivo pra gente conhecer gente nova e fazer amizades. O companheiro, ali na poltrona do lado, era sempre a possibilidade de um bom papo, e a gente nem ver a viagem passar... Quase 200 km, daqui a Belô, era um pulinho... Hoje em dia, só celulares aproximando mundos virtuais, e as pessoas cada vez mais distantes... E se te perguntam “Você tem WhatsApp?” e você diz que não, aiai... Com certeza você é um ET, nesta Terra tecnológica de meu Deus!



Baratinha


— Êh, Cumpá Chico, nóis aqui ino de Baratinha pá cidade! Ôtros tempo, hein?
— Então, Cumpá Beniço! Pensá que nóis ia de cavalo, chegava lá co’sóli nas artura!
— Cruizincredo. Nem é bão alembrar!
— Adepois desse meu Fusquinha bão, o trem mudô! A Azulinha é u’a mão na roda, sô!
— Ich! Agora é um pulinho! É pé cá, pé lá!
—Eu tem cá pra mim, Cumpá Chico, que carro é o Fusca, ou sinão o Frit Único.
—E cê tá co’a razão, Cumpá Beniço! Mái eu inda continoo com a Baratinha.
— Baratinha danada, essa, né, Cumpá Chico?
— Uai, sô! Ela já foi e vortô em São João me Acode, sem inguiçá!
—Nó! E óia que daqui no São João gasta u’as duas hora! A bichinha é 75, né?
— 75? Cumpá Beniço! 74! E num fosse o risco que a Formosa féiz nela co’os chifre, pudia tá em brinco!
— A puêra tamém judia, né, Cumpá Chico?
— É... E nêss tempo de istiage, nem se fala!
— Dá dó memo, sô! Os vidro, ói que trem! Quais que num inxerga nada!
— Ah, Cumpá Beniço, me alembrei!
— De quê, sô?
— Dum trem que contáro lá na venda do Osóro...
— Uai! Mái quê foi?
— Cê num há de vê que faláro que esses Fusca tem um mistéro?
— Cê tá doido, Cumpá Chico? Que mistéro?
— Uai, homi! Disséro que um Fusca nunca fica sozim!
— Quê isso, gente? Cumé qué isso?
— Uai, disséro que se ocê vê um Fusca, pode caçá em vorta, que vai tê um cumpanhêro dele por perto!
— Credincruiz trêis vêis! Mái será que procede, Cumpá Chico?
— Sei não, Cumpá Beniço! O povo ruma cada coisa! Cê querdita nisso?
— Ich! Cê me apertô, Sô! Sei não, uai! Mái pêra aí!
— Diga, Cumpá!
— É capaiz de num tê jeito não, Cumpá Chico! Cê vigia se tem fundamento: nóis tá siguino nessa estradinha onde Juda perdeu as bota...
— Hum...
— Magina que trem custoso! Da donde que ia tê cabimento dôtro Fusca dá as cara nesse mundão perdido nas puêra aqui do Rincão?
— Uai, Cumpá Beniço, pensano bem é custoso memo!
— Custoso não, Cumpá Chico! Impossive!
— Nossinhora, Cumpá Beniço!
— Que que foi, homi? Rodô no cascái?
— Cascái nada, sô! Óia lá pra diente do mata-burro, desceno a estrada do Zé Sivirino!
— Santantõe do Amparo, Cumpá Chico! É uma Baratinha que meus zói tá veno?
— E das marela, Cumpá Beniço! Da corzinha dum canarim!


Dos Anjos


Pois então, Dos Anjos, você aos 42, com cara de 60... É sofrimento! Também você só viveu amarguras nesta vida! Sem pai, sem mãe, criou-se em casa de conhecidos. Passou fome, passou frio... Se juntou com Natalício e apanhou pra morrer. Lembra quando ele chegava trocando as pernas, xingando nome feio, na volta dos botecos? Dali não saía nada que prestasse.  Até o dia em que caiu no mundo de vez com aquela oxigenada do parque de diversões, não foi? Os meninos ainda miudinhos... E tudo por sua conta.
25 de fevereiro: sei que você não esquece esta data. Hoje faz três anos, Dos Anjos, que seu filho Jurandir foi preso. Você acreditava que ele ia dar gente e pudesse lhe valer. Mas, ele nunca prestou. Sempre lhe deu trabalho desde pequeno, lembra? Começou a roubar ainda menino. Quantas vezes lhe chamaram na escola?  Pois é... Não teve jeito. Cresceu, caiu nas trevas... Artigo 157, né? Eu sei que dói...
Jaqueline também só deu pó pra cheirar, não é, Dos Anjos? Solta na rua, vivia amolando, criando confusão em casa de vizinho. Não era à toa que amiúde, a mulherada batia na sua porta pra tirar pergunta: intrigas da sua filha do meio. Cresceu malvadinha, a menina, até dar no que deu: meteu-se naquela enrascada dos diabos, com tráfico e tudo! Pra se safar, anoiteceu e não amanheceu... Nem notícias, nunca mais, né? Cadê será Jaqueline?
E Janaína? A caçula podia ter sido a salvação. Mas também nunca foi flor que se cheirasse. Nova ainda, pendeu pro lado daquela gente da pesada. Agora tá lá, naquele barracão da Wenceslau Batista. Quase todo fim de semana, batida policial. Você não gosta de falar. Diz que ela trabalha e mora em casa de família rica, na Zona Sul. Mas, e as moças com quem ela divide aluguel, hein? Eu sei que você sabe bem quem são...
Pois é, Dos Anjos, sofrimento vira doença. O seu virou. Dor pra todo lado, vontade de só ficar na cama. Exame daqui, dali, e nada do porquê da doraiada. De nada adiantou a remedama receitada no Postinho. Até que o pessoal de lá achou por bem lhe encaminhar ao Serviço de Psiquiatria da prefeitura. Foi lá que descobriram: era dor da alma... Só podia ser mesmo, né? Doença que não dá em exame é dor de alma, não tem jeito...
Eu sei que as coisas estão ruins, Dos Anjos! Agora você desce a Tobias de Souza pensando em como será amanhã. A fábrica de bichinhos de pelúcia fechou, você acaba de perder o emprego. E as dívidas? Como vai ser, daqui pra frente, hein? Aluguel atrasado, gás no fim, luz e água cortadas a qualquer momento. O aviso chegou ontem, não é?
 A Tobias de Souza ferve a essa hora, Dos Anjos. E você segue com o coração vazio de esperança. Mas, vou lhe dizer, mulher, não se preocupe! Você vai ficar livre de tudo isso... Tá vendo aquele fusca amarelo que apontou lá na esquina? Pois é, Zé Perigoso vem ao volante, em altíssima velocidade. Tomou todas lá no “Bar da Arruaça” e vai subir na calçada — aqui, no ponto exato em que você está. Mas não tenha medo! Vai durar nada: uma pancada, um barulho surdo que vai chamar a atenção dos transeuntes...  O silêncio, a paz por fim! Anime-se: nada pode ser pior que foi sua vida. Maria dos Anjos Ferreira da Silva Apolinário, garanto-lhe: estou do seu lado... Se você nasceu Dos Anjos, você é minha...

Bilhete na Geladeira

Se você chegar em casa
E não me encontrar aqui
Pois, não estranhe
Fui ali no Açaí...
Ah, fiica tranquilo
 Levo agasalho de lã
Pode ser que faça frio
E não sei se volto hoje
Ou amanhã...
Beijos!!!


Mundo Louco

“O pior cego é o que não quer ver”
O pior surdo é o que não quer ouvir
O pior cético é o que se nega a crer
Mesmo quando as evidências
 Não deixam mentir
Em se tratando de escolhas,
 Todo critério é pouco
As verdades estão aí, 
Só mesmo os ensandecidos
De ilusões, entorpecidos
Correm pro fundo do poço...
Êh, mundo louco!


Palavra Aberta

E ainda insistes na palavra aberta
Mas silencio minha voz
Toma em tuas mãos esse protesto mudo
[há cinzas sobre-tudo ]
E num cinzento atroz
Sigo trancada, amordaçada
Pra nunca mais falar de nós...


Papai Rolinho

Apesar do barulhão da máquina de lavar eles não estavam assustados: sobre a lâmpada, no alto da parede, o casal de rolinhas tentava se equilibrar, agarradinhos um ao outro. Quando dei com eles ali, e os olhei de frente, pensei que iam voar. Mas não o fizeram. Pelo contrário, sustentaram meu olhar e permaneceram quietinhos...
Deixei como estava pra ver no que ia dar. E enquanto cuidava da roupa e da arrumação da varanda, vez em quando olhava os passarinhos ali naquela calma que nada abalava. Dei expediente de outros afazeres e qual não foi minha surpresa ao procurar de novo por eles. Havia novidades! O Rolinho tinha buscado alguns fiapos de capim e presenteava a amada com a bela oferenda! Caiu a ficha! Ah, estavam planejando começar ali uma nova família! Por isso, aquela insistência em fincar pé, ou melhor, asas, no lugar.
À tarde, ao voltar do trabalho fui dar uma olhada na situação. Os dois tinham sumido e deles só restara um emaranhado de capim que tinha escorregado para o tanque. Ah, que pena! Tinham desistido de seus planos. Também pudera. Sobre uma lâmpada o novo lar não ia ter muita chance de sucesso. Deve ser isso que pensaram...
No dia seguinte o que vejo? A duplinha dinâmica tentando um novo espaço para sua morada. Agora no cruzamento do canto do telhado da varanda. Pareceu-me bastante sensato o novo endereço. Pelo menos estariam a salvo de chuvas e sol muito quente, sem a luz incômoda de uma lâmpada sob o ninho. Pois bem, a faina recomeçou. Enquanto Mamãe Rolinha, toda doutora, ficava no território do ninho, Papai Rolinho ia dar uns rolês pra buscar raminhos...
E o que não faltava nos arredores era matéria prima! Muito galhinho seco, muita raiz de grama, assim tudo meio sequinho prontinho pra ser usado. E era bonito ver o voo do futuro papai! Busquei a máquina fotográfica e consegui captá-lo em pleno voo com os gravetinhos no bico — às vezes, tão grandes que o desequilibravam no ar. Uma graça de se ver!
Mais um... Mais outro voo! À cada revoada lá vinha ele todo orgulhoso com mais um troféu! E ao chegar do ladinho da esposa entregava a ela o raminho no bico. Creio que a exigente senhora, sabedora de seu poder, fazia uma meticulosa avaliação do material: alguns ela simplesmente descartava jogando tudo no chão; outros ela acolhia com carinho especial e com muito jeitinho ia colocando debaixo das asas, sob o peito, tudo bem trançadinho, verdadeiro trabalho de arte. Como agradecimento, o marido ganhava uma espécie de arrulho e, feliz, partia em busca de outro presente...
Na volta do trabalho corri pra dar uma olhada na edificação de meus novos vizinhos. Mas que surpresa! Os graciosos engenheiros tinham se mandado do canteiro de obras e só vi os restos da trabalheira da manhã todo espalhado no chão. Que explicação? Chegaram à conclusão — por uma razão que só o instinto animal conhece — que ali também não ia dar certo. Quem sabe não gostaram dos olhares intrometidos da dona da casa e resolveram bater asas...
Porém a coisa não parou por aí... Alguns dias depois descobri os fugitivos muito bem aninhados no pé de um arbusto ao lado da janela, desta vez num canto mais sossegado. E lá a coisa progrediu, pois numa escapada dos dois pude vir dois ovos branquinhos no fundo de um aconchegante ninho.  A natureza é mesmo perfeita. Era a vida prontinha pra se perpetuar...

Não Vai Combinar...


— Vô!
— Que que foi, Luisinha?
— Tô querendo uma coisa...
— Aiai! Quê será, gente...
— Eu quero que o senhor pinte a Branquinha...
— Nossinhora! Danou-se! Pintar a coelha? E pra quê?
— Enjoei dela branquinha, Vô! Eu quero ela rosa, toda rosa!
— Luisinha, cê tem certeza?
— Tenho, vô!
— Mas, menina, onde já se viu coelha dessa cor que cê quer?
— No desenho, vô! No desenho tem!
— Mas, escuta... Desenho não é de verdade!
— Eu sei, cê já me falou isso...
— Pois, então! E a Branquinha é de verdade!
— Vô! Ela pode ser a primeira coelha cor-de-rosa do Planeta Terra, uai!
— Pode, mas será que ela ia gostar?
— Eu acho que ia, Vô!
— E ela por acaso te falou isso?
— Não falou, mas eu sei... Ela não falou porque ela não fala.
— Tá bom, Luisinha, o vô tá entendendo, mas não tá  gostando disso, não!
— Ué, por quê?
— Porque  as coisas são como são, menina! E a Branquinha nasceu branquinha.
— Mas a Vó, tinha o cabelo branco e fez ele ficar vermelho!
— Mas gente é diferente...
— Não sei porquê! Por quê?
— Porque é, ora!
— Vô, fala  direito! Por que é?
— Ih, Luisinha! Olha lá quem tá na moita de cenoura!
— A Branquinha!
—Que danada! Já tá tomando o café da manhã!
— Vô... Peraí...
— Quê que foi?
— Mudei de ideia...
— Mudou?
—Pode deixar a Branquinha branquinha mesmo...
— Uai, por quê?
—Tô achando que ela cor-de-rosa não ia combinar...
— Combinar com o quê, menina?
— Com as folhinhas da cenoura, Vô...
— Ué, da onde cê tirou esse trem de combinar, Luisinha?
— Vô! Eu vi a minha vó falando pra minha mãe aquele dia do almoço.
— Falando o quê?
— Que o meu laço rosa não ia combinar com minha saia verde. É isso, Vô!

(inspirado nas delícias que as crianças pensam e falam...)




Chip... rei!


A moça da Operadora operou direitinho: me convenceu a entrar num novo Plano de telefonia.  Ligações pra aqui e pra ali de graça, não sei quantos MB de internet, sem contar os zilhões de minutos gratuitos pra falar com quem quiser – eu nem gosto muito de telefone – mas o que se passa na cabeça da gente, numa hora de tantas ofertas? Inexplicável. Ah, e tinha ainda um chip de graça! Já pensou que bacana, uma alternativa a mais pra falar com parentes, amigos e amores sem pagar nadinha? Ninguém resiste, eu me perdoo.
O chip chegou pelo correio num envelopinho marrom. Abro a capinha do celular e, em voz alta, pergunto a mim mesma: onde será que coloco esse chip novinho? Ninguém me responde, então o jeito é “fuçar” até acertar - ou arrasar de vez com o aparelho – É ir mexendo, que uma hora dá certo. Deu errado! Não vi nada, nem sei como foi. Puxei um araminho e o chip voou! Uma molinha? Eu ignorava totalmente que chips costumam pular. Mas o meu pulou! E tão ultravelozmente que não deu pra acompanhar o trajeto no ar. Susto! Onde tinha ido parar o minúsculo quadradinho dono dos meus segredos? Sumiu! E com vários reais em crédito, colocados justo naquela manhã? Que azar!
Declarei guerra ao chip sumido. Procurei pelo chão, debaixo do sofá, nas dobrinhas da cortina, juro, quase na lâmpada do teto! Nada. Entre o rodapé de madeira e a parede? Loucura. Chip-irei!? Um chip, em sã consciência, jamais acertaria uma abertura daquelas. Passei a ponta dos dedos pelo tapete tentando detectar qualquer coisa que se parecesse com um chip. Também nada. Nestas horas é que vêm as coisas mais absurdas. Teria voado para o banheiro? Pra não restar dúvida, conferi banheiro, cozinha, corredor. Só pra chegar à conclusão de que chips não dobram quinas de porta.
Por fim, conclui! Ele só podia ter se infiltrado na minúscula fenda entre o assento e o braço do sofá. Era ali que eu estava sentada na hora do desastre. Ao sofá! Mínima, a distância entre o assento e o braço! Ali não cabia um dedo. Se não cabia um dedo... Então uma agulha de crochê! Deslizei a agulha pelo fundinho até que tocou em alguma coisa. Seria o chip? Era um clips... Quase iguais, mas só no nome.
Puxei a agulha pro meu lado, agucei os olhos. Vi o chip! Pequenininho, branquinho, com umas formas douradas. Era ele sim! Tentei levantá-lo com a agulha: foi quando ele saiu do meu campo de visão e despareceu para sempre, amém, na base da almofada. Perdido! Agora não tinha mais jeito. A não ser que eu cortasse em pedacinhos, meu antigo e simpático sofá cor de ferrugem... E é claro, isso eu não ia fazer de jeito nenhum! Primeiro porque não pretendo trocar de sofá nos próximos cinquenta anos; segundo, porque um chip não merece assim tanto sacrifício... Restou-me a lei de Pollyanna  e seu “jogo do contente”: nesse momento há tragédias imensas acontecendo no Planeta, e perder um chip – ainda que de bobeira - não é o fim do mundo. Antes que feche a loja vou lá correndo comprar outro. Não é bom que a gente fique sem telefone. Nem por um minuto! Vai que o destino esteja me reservando uma boa notícia, justo pra hoje e me encontre sem comunicação! Nem pensar!


Autora: Marina Alves - Lagoa da Prata/MG

Página da autora:

http://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=64920

Publicação autorizada pela autora

Relógio de acesso: 142.584 a 144.258, total de acessos até 24/12/2014: 1.674


terça-feira, 18 de novembro de 2014

Medo de avião - Autor: Dilermando Cardoso

Por mais que as companhias aéreas façam propaganda, garantindo que avião é o meio de transporte mais seguro do mundo, como verdadeiro caipira pé de pombo - até roxo de tão vermelho - ali das bandas do Engenho do Ribeiro, prefiro viajar pisando na poeira ou no barro dos caminhos. E não é por ignorância, nem superstição.

Embora desacredite de fadas e bruxas, tenho por todos os seres alados e etéreos respeito e reverência – não costumo abusar da sorte. Porque vai que existam realmente... Ainda mais que me acho meio predestinado, como se sobre minha cabeça houvesse um pára-raios invisível, atraindo determinadas coisas. Calma, afoito companheiro, não falo deste enfeite em forma de aspas gigantes, o popular chifre, que você está imaginando, não! É que se eu e outras mil pessoas estivermos, por exemplo, num comício na Praça da Matriz e um pardal que passe voando, naquela hora deixe cair sua titica: adivinha a cabeça de quem a merda vai carimbar – senão do degas aqui?

Por esta e outras muitas foi que ao programar com amigos, a passagem do réveillon numa capital do Nordeste, propus de imediato que alugássemos um ônibus para a viagem. Palpite infeliz. “– Vamos de avião!” Decidiram os outros, em uníssono. Assim, pela primeira e tomara que última vez na vida, fui arrastado - bêbado como peru na véspera do Natal - para dentro de uma destas aves metálicas que voam sem bater asas. Não me restou escolha: desistia do passeio ou tinha que embarcar uma semana antes: de navio ou trem de ferro correndo o sério risco de chegar lá passada a Festa de Reis.

Não desconfio em que parte da rota estávamos, mas aquilo voava alto pra cacete. E eu mais ainda! Foi quando a aeronave entrou numa tal zona de turbulência – puxa vida, até no céu tem putaria? E o avião mergulhou, ou caiu, ou despencou, sei lá como é que fala. Só sei que dos mais de sete quilômetros de altitude em que voava, o trem baixou para quatro ou cinco, em questão de segundos. A gritaria foi geral, com todo mundo acreditando que ia morrer. Para piorar a situação, naquele exato momento estava-se servindo a bordo uma gororoba fria e sem tempero – resultando daí uma tremenda meleca despejada pelas aeromoças em cima dos apavorados passageiros.

Mas, enfim, se aqui estou enchendo a paciência de algum leitor insone com este delirium tremens, foi porque depois da quase queda fatal os pilotos estabilizaram o avião acima das nuvens. E mesmo mortos de medo, sobrevivemos todos! Pelo resto da viagem foi só passageiro fazendo fila na porta do banheiro, para se lavar – e não apenas por causa da comida derramada, não...

Faz bem vinte anos, os diretores da Cooperativa Rural de Bom Despacho viajavam num Boeing para Porto Alegre – onde participariam de certo congresso –, quando ainda sobrevoando a Serra do Curral, nos arrabaldes da capital mineira, solícitas aeromoças distribuiram aos passageiros um folheto ilustrativo, de como comportar-se em ocasião de pane durante a viagem, inclusive ensinando a transformar os assentos das poltronas em coletes salva-vidas, caso o avião fizesse pouso forçado no mar. De perto da janelinha onde viajava, olhando aquele mundão de terra que se afastava quilômetros abaixo, com presença de espírito o sô Antônio Bernardes virou-se para o Nego Rodrigues, seu vizinho de cadeira, indagando cismado: “– Compadre, mas e se esse trem despenca no cascalho, como é que há de ser?
¨

Autor: Dilermando Cardoso - Bom Desapcho/MG
Publicação autorizada através de e-mail de 12/10/2011

A morte manda mensagens - Autor: Eurico de Andrade

Lá no sertão é crença comum que quando se vai levar um defunto para enterrar, não se pode parar. Pra nada. O morto tem que estar sempre em movimento. Sempre pra frente. Se os carregadores querem fazer mal a alguém é só parar com o defunto nas terras desse alguém ou na frente da sua casa. É desgraça na certa para o dito cujo. Por isso, donos de terra ficam de butuca quando passa carregamento de defunto. Até tiro dão se há ameaço de parar. Os carregadores têm que ser rapidinhos. Dar sossego depressa à alma do morto pra o distinto não ficar com raiva nem vagando por aí.

Pois bem. Num certo dia de janeiro, eis que morre o Deusdete. Homem novo ainda. Cufou por causa do barbeiro. Choro para os parentes e pesar entre os amigos. Defunto tinha que ser enterrado. Xico Vitrola, seu amigão do peito, arruma mais cinco para carregar o corpo do Deusdete até o cemitério de Tabuí. Caminho longo, de quatro léguas. Botam o defunto numa rede, onde passam uma vara bem grossa e, dois a dois, vão carregando o amigo até a cidade dos pés juntos. Cansaço muito. Diminuem um pouco a marcha e andam e andam. Tardezinha chegando. Pispiando a noite concluem que não dá para chegar a Tabuí antes do fechamento do cemitério. Negócio é descansar e continuar no rompante da manhã.

Cada um se ajeita como pode. Morto é deixado num canto. Puxam o ronco. Cansaço dos diabos. Só o Xico Vitrola, pesaroso com a morte do amigo e medroso como ele só, não consegue pegar no sono e fica apreciando a lua cheia, toda brilhosa, no céu. Lá pelas tantas, com os olhos ainda arregalados, vê uma coisa que o deixou de cabelos em pé. O morto parece que se levanta e vem caminhando em direção ao grupo de amigos, no rumo dele. Passa por cima de um, assim meio no ar. Passa pelo outro e mais outro, até passar pelo quinto. Tudo muito de leve, parecendo fantasmado. Quando Deusdete vai passar por cima do Xico, este não se contém e apronta o maior berreiro, soltando os gritos represados na garganta:

- Pra cima de mim não, coração! Por amô de Deus, Deusdete! Vai pro seu corpo, diabo! Cruzcredo!... Avemaria!... Creindeuspadre!...

Com a gritaria do Xico da Vitrola, companheirama acorda pedindo explicação. Quecofoi? Queco não foi? Deixa disso, minha gente! Nossa Senhora da Aparecida!... Explicado bem explicadinho, alguns acharam graça e outros ficaram com a pulga atrás da orelha, preocupados. Um deles foi o Ocride:

- Óia, gente! Isso é castigo de Deus. O morto num discansô até agora porque a gente num interrô ele. Deusdete deve tá divera puto da vida cagente!

- E o diacho é que ele passô inriba de nóis, né sô?... Isso é mau siná. Queira Deus que certas coisa qui o povo fala seja só boataria...

Foi o que conseguiu completar João Bentinho, todo cismado, o primeiro que o espírito do Deusdete passou por cima. Daquela hora pra frente ninguém mais dormiu. Só o Juca Morais é que ainda, de madrugadinha, conseguiu tirar uma pestana. Afinal, ele não acreditava nas lorotas que o povo conta.

- Uai, sô! Dexa de bobage, gente! Larga de mão disso! Quem morreu, morreu! Num vorta mais. O Xico tava era com sonhação!

Na metade da manhã chegaram com o corpo frio e duro do Deusdete no cemitério. Enterraram o amigo. Passaram num boteco para molhar a goela e se mandaram de novo, estrada a fora, rumo do sertão, cada qual pro seu canto.

Xico Vitrola, naquele ano, teve que fazer o trajeto de carregamento de defunto mais cinco vezes.

Autor: Eurico de Andrade - Brasília/DF
Publicação autorizada por escrito pelo autor da obra

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Roubar é comum

  
Meu tio Oto tinha uma loja de calçados em uma rua do centro histórico da cidade. Durante muitos anos a Casa Lorita garantiu o sustento da família, mesmo algum tempo após a sua morte prematura.
O padrão da loja era voltado para a classe média, oferecendo produtos de qualidade com preço justo. No rol de fregueses estavam famílias tradicionais da cidade e muitos colonos que se abasteciam no comércio das cercanias, enquanto os cavalos matavam a sede no bebedouro do Largo da Ordem.
Naquela tarde de pouco movimento meu tio estava sozinho na loja, quando chegou uma senhora bem vestida, educada e falando com o sotaque chiado de uma importante e maravilhosa cidade da Região Sudeste. Pediu para ver alguns modelos, sentou-se e foi provando aqueles que ele lhe trazia.
Em poucos minutos já dava para concluir que se tratava de uma cliente exigente demais, pois nada lhe agradava. Um apertava em cima, outro nos lados, um terceiro folgava. Aquele era feio ou a cor não combinava. Calçava um por um e torcia o nariz.
O tio Oto, com a paciência que Deus lhe dera em excesso, ia tirando tudo das prateleiras, na tentativa de encontrar um exemplar que satisfizesse tão sofisticada senhora.
Depois de oferecer todos os modelos das prateleiras, ele foi ao estoque, no mezanino, buscar mais alguns. Olhando lá de cima, viu que ela escondia um par do melhor sapato de salto alto na bolsa, depois de experimentá-lo e tampar a caixa cuidadosamente. Tio Oto voltou com vários outros pares e continuou no seu ofício de servir, com a mesma dedicação e sem comentar nada. Queria ver no que ia dar aquilo.
Depois de meia hora e muitos pares provados, colocando um ar forjado de irritação no semblante, a forasteira levantou-se e disse:
- Já vi que nesta cidade não tem sapatos que me sirvam.
Voltou-se para a porta com o propósito de tomar o rumo da rua, mas o meu tio prontamente a interrompeu, postando-se à sua frente.
- Minha senhora, lamento não termos sapatos do seu agrado. Mas gostaria que devolvesse o par que está na sua bolsa e faltando aqui - disse ele com a caixa vazia nas mãos.
A mulher, surpresa ao saber-se descoberta, logo fingiu indignação para começar sua defesa. Mas arrependeu-se assim que iniciou a primeira frase, avaliando que de nada adiantaria um bate-boca àquela altura dos acontecimentos. Olhou para o tio Oto de cima a baixo com visível desprezo e sacou da bolsa o par de sapatos. Com força atirou-os aos pés dele e, caprichando no sotaque, despediu-se com esta:
- Pode ficar com sua porcaria. E saiba o senhor que roubar, neste país, é comum.
***
N. do A. (2) - Na ilustração, tela de Paul Garfunkel retratando o Largo da Ordem, em Curitiba, Paraná, em cujas imediações ficava a Casa Lorita.

Autor: João Carlos Hey – Curitiba/PA
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Publicação autorizada pelo autor

A última ceia de Lampião - Autor: Rangel Alves da Costa


Era por volta da segunda dezena de julho de 38, na Gruta do Angico, nas beiradas do Velho Chico, nas terras da povoação sergipana de Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo, tendo o município alagoano de Piranhas do outro lado, um pouco mais à esquerda.

Ali ao redor da gruta se escondia o bando cangaceiro de Virgulino Ferreira da Silva, o Capitão Lampião, em desconfortante repouso depois de chegar de longa jornada pela aridez baiana do Raso da Catarina.

O Capitão achava o local um refúgio seguro, pois de difícil acesso pelo lado sergipano e podendo contar com o grande número de amigos que mantinha na região, gente humilde, da mataria, mas também portentosos senhores de terras. Do coronel ao matuto, era significativo o laço de amizade construído.

Mas para se manter naquele coito, naquele refúgio de espinho, ao abrigo do sol e da lua, Lampião precisava muito mais do homem do mato do que de outra pessoa influente. E para tal não existia amigo melhor, mais confiável e mais conhecedor das veredas sertanejas do que o coiteiro.

No respeitante ao cangaço, coiteiro era aquele sertanejo que servia de intermediário entre o bando e o mundo exterior, fazendo às vezes de correspondente, de mercador, de assistente de quase tudo. Assim, era responsável pelo transporte do alimento, do remédio, de dinheiro e tudo aquilo que os cangaceiros necessitassem.

Muitas vezes somente o coiteiro sabia o local onde o bando estava escondido. E aquele que soubesse e lhe fosse confiado a manutenção do segredo - um juramento que deveria ser inquebrantável - entre o bandoleiro e o matuto, suportaria até a morte para não trair a confiança do Capitão. E muitos foram presos, torturados, humilhados, mas mantendo sempre o silêncio da honra.

Por isso mesmo que Lampião nutria uma amizade especial por cada um desses sertanejos, cada coiteiro que arriscava a vida em nome da sobrevivência e subsistência do bando. Sabia que seria muito difícil sobreviver nos escondidos sem tão importante ajuda. Sabia que do seu silêncio dependia o amanhã do seu povo marcado pelo destino das perseguições.

Daí que estando refugiado no Angico e na tentativa de estreitar ainda mais os laços de amizade e a rede de proteção, lá pra cima do dia vinte, mais precisamente no dia 27 de julho, resolveu que seria a hora de convidar a coiteirama para um regabofe, para um café à base de muita carne de bode e farinha seca. Tal evento ficaria lembrado na memória nordestina como A Última Ceia de Lampião.

Denomina-se ceia a refeição da noite, a última de cada dia; a última refeição do dia, entre o jantar e o sono noturno, ou em lugar do jantar. A Bíblia também relata uma santa ceia, que foi a última refeição de Cristo com os apóstolos, por ocasião da qual instituiu a eucaristia, e antes de ser preso e crucificado. Foi também nesta ocasião que Jesus revelou que um de seus discípulos iria traí-lo.

Talvez predestinado, intuindo o que fatalmente lhe estaria prestes a acontecer, Lampião resolveu que nesta refeição sertaneja homenagearia os fiéis matutos e procuraria olhar bem nos olhos daquele coiteiro tentado a fraquejar e traí-lo, apontando covardemente à polícia alagoana comandada pelo Capitão João Bezerra onde o bando estava escondido.

Assim foi feito. Aproveitou que o mais famoso dos coiteiros apareceu por ali cedinho e pediu a Mané Félix que providenciasse tudo o que precisava para a janta do anoitecer. E por ele mesmo mandou avisar, de boca em boca, a cada coiteiro para comparecer. E cada cabra veio até de longe atendendo ao chamado do amigo Capitão.

Quando o entardecer começou a tomar outra cor a carne de bode era estendida por cima das fogueiras abertas no chão. Coiteiro chegava trazendo uma pinga, uma comida diferente e logo se reunia aos demais. Todos, coiteiros e cangaceiros, com semblantes alegres e festeiros, menos o Capitão Lampião.

O Capitão tentava, a todo custo, fingir o pressentimento ruim que sentia, fazia de tudo para não abrir logo a boca e perguntar quem havia cometido o pecado da traição, quem havia revelado o paradeiro do seu bando. Ainda não tinha certeza do nome, mas tinha quase certeza de quem seria capaz de tal atitude.

Mas se conteve e procurou palavras de agradecimentos para os destemidos sertanejos, ainda que a todo instante tivesse vontade de apontar a arma em direção a um deles e dizer que era melhor falar a verdade para não morrer. Não fez assim, e por isso entristecia-se ainda mais. Sabia, pois, que o seu fim estava muito próximo, sentia isso por dentro.

Com pedaços de bode assado passando de mão em mão, Lampião enfim pediu silêncio e disse que infelizmente tinha algo a dizer que lhe cortava o coração. Um dentre vocês me traiu. Um dentre vocês que se serve do bode dessa refeição me traiu. Foi o que disse o Capitão. Todos se olharam assustados e começaram a se perguntar quem seria capaz de fazer tal absurdo.

Mané Félix, que estava sentado ao lado do rei dos cangaceiros, perguntou-lhe se podia dizer quem havia feito isto. E Lampião simplesmente respondeu que não adiantaria, pois ainda que dissesse o nome este negaria três vezes trezentas vezes. E completou dizendo que o remorso tomaria conta do coração traidor.

E contam que Pedro de Cândido, um dos coiteiros ali presentes, saiu de lá chorando. Nesse mesmo dia, mais cedo, na feira de Piranhas, ele havia contado à volante do capitão João Bezerra que Lampião e seu bando estavam refugiados no outro lado do rio, ali na Gruta do Angico.

E horas depois dessa última ceia, na madrugada do dia 28 de julho, a polícia atravessou o rio e cercou o bando, matando Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros.

Autor: Rangel Alves da Costa - Aracaju/SE


Poeta e cronista



Publicação autorizada através de e-mail de 30/06/2012