terça-feira, 1 de abril de 2014

Retórica sentimental

Autor: Fernando José Carneiro de Sousa

     Corria o ano de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1974 quando da origem de Os Gândavos, que se deu no final do referido ano com a peça  “Loucuras em um São João”. Uma obra adaptada pelos alunos da 4ª série do Ginásio Municipal Padre Leão, tendo como finalidade coroar com êxito o término do curso ginasial. Conclusão obtida com muito esforço, pois naquela época, ensino era coisa séria. Essa peça veio do cordel “Coco verde e melancia” que sofreu sérias modificações feitas por nós. Cada um dava uma ideia, transmudando-a em uma nova engraçada comédia. A peça foi um retumbante sucesso, leve-se em conta que na época inexistia em Custódia a máquina de fazer doido ( televisão).
Naquele tempo os meios de comunicação eram limitados, entretenimento mais ainda. Qualquer atração artística fazia enorme sucesso (circo, cinema de 16 mm de Zé das Máquinas, shows de auditório de Zé Melo no C.L.R.C). Tudo isso atraía muitos expectadores.
Insuflados por esse êxito momentâneo, resolvemos dar continuidade a atividade teatral. Aí surgindo como por acaso e de formação espontânea “Os gândavos”, termo descoberto por Domingos em uma de suas muitas                                               viagens psicodélicas pelas páginas do “pai dos burros”, como se dizia na época ( dicionário).  As pequenas letras do dicionário fez Domingos ler gângavos em vez de gândavos, na realidade gandavos.  Prevalecendo a palavra gândavos por sua eufonia em relação ao hino do grupo teatral, como acertadamente relata Celêdian em seu texto.
No lusco-fusco de um fim de tarde, inspirado pelo ocaso, Domingos compôs em parceria com Tonho Remígio o hino de Os gândavos, cantado antes das apresentações por todo elenco do grupo teatral. Em seguida, o pano se abria e começava o primeiro ato.
Entre os muitos talentos que compunham a trupe, o que mais admirava era Domingos por sua  capacidade criativa e de improvisação, como se tivesse vivido uma formação circense. Fraco nos ensaios e um gigante nas apresentações (que Deus o tenha!). Lembro-me de um fato surreal na cidade de Iguaraci: teatro completamente lotado, o ator principal tem um coma alcoólico devido a um pileque homérico, chega carregado nos braços dos colegas minutos antes da apresentação causando pânico geral em todos. Domingos salvou a situação substituindo-o em atos divinos de improviso (até hoje não sei onde ele foi buscar tanta criatividade) Com essa façanha cai o pano.
Fim do primeiro ato.
Tudo começou como uma simples brincadeira. Tínhamos como referência primeira o teatro dos circos mambembes que em suas peregrinações quase messiânicas, naqueles tempos, percorriam as vilas, povoados e pequenas cidades deixando uma forte impressão em suas apresentações. Mesmo depois de ter ido embora os bordões usados pelos palhaços no coroamento das piadas eram repetidos pela população como hoje se repetem os bordões deixados pelas novelas.
        Os pequenos circos que povoavam nosso imaginário dividiam o espetáculo em duas partes: palco e picadeiro. Começava no picadeiro com apresentação de equilibristas, malabaristas, contorcionistas,  mágicos, números de trapézio (sem rede de proteção), palhaços engraçados que destilavam piadas picantes fazendo enrubescer o mais sisudo dos expectadores. A máxima conhecida era: quanto menor o circo mais “escrotos” eram os palhaços.
A segunda parte era a peça teatral. Geralmente comédias escrachadas ou românticos dramalhões. As comédias humorísticas protagonizadas pelo palhaço principal tinham começo, mas às vezes não tinham fim. Então eles usavam um artifício bem conhecido da plateia que era terminar a peça com fogo. Consistia num artista  correr  atrás dos atores com um archote aceso. Todos saíam em debandada  enquanto o pano caía.
Existiam números que se repetiam em quase todas as trupes que chegavam. O “piano” era um caso clássico. Quando começava o quadro, a plateia, pressentindo o que vinha, gritava em uníssono: “o piano, o piano, o piano” e eles às vezes pegos de surpresa, embaralhados, encaixavam um novo tema em cima. Algumas companhias sem essa habilidade simplesmente concluíam o quadro do piano, que era engraçado, porém muito repetido.
Anos  depois, conversando com o palhaço Chumbrega indaguei sobre a repetição dos números em todos os circos. Disse ele: “Os números são iguais, a diferença é a fascinante habilidade  de cada palhaço.”
A arte primária que representava o circo do palhaço Pinicolino foi uma grande síntese dessa atmosfera mágica que não existe mais. Essa foi uma das nossas inspirações.
Apesar de ter nascido de forma ingênua e espontânea, Os gândavos  posteriormente foi influenciado pelo grupo teatral "Disparada" da vizinha cidade de Sertânia (que era um grupo mais cabeça). Além do teatro, do qual meus dois primos fizeram parte, o "Disparada" possuía um jornal próprio, crítico e irônico nos moldes de "O pasquim". Afinal, era época da ditadura.
Os alunos da quarta série ginasial constituíam o grupo central da formação original de Os gândavos. Além de alunos de outras séries e de professores como Jussara, que fez parte da direção e do núcleo criativo do grupo, que eu lembre, faziam parte meus primos- os irmãos Tonho e Jorge, Paulo de Zezinho Batista, Jéfferson, Gílson Pereira, Pedro de Dona Pura, Carlos Lopes, Janete, Fátima, Soneide, Evanúzia, figurantes das demais séries e outros dos quais não me vêm à memória..
 Depois de quase quatro décadas, para meu espanto,  quem sabe o destino proporcionou um inusitado encontro. Nós que fizemos parte do grupo original! Esse momento parece mágico, tão emocionante quanto estar em atuação num palco iluminado. Além das pessoas do grupo original (tão distantes), autores desse imenso país  (distantes também) se unem sob o nome Gândavos, um encontro para mim antes impensável.
Lembro-me de uma apresentação no colégio de Dr. Pedro. Que belas recordações!
 Enquanto a peça rolava, tinha-se o fundo musical “Rosamund” de Franz Schubert , que dava um ar de atemporalidade ao momento. Vieram outras peças: Rua do lixo, 24, de Vital Santos; Morre um gato na China ou Uma janela para o céu (Pedro Bloch) e outras que adaptamos de sketches e de outras obras, dentre as quais, o drama familiar que começava com a frase de Leon Tolstoi “Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma a sua maneira” cujo título não consigo lembrar, pois parte dessas recordações se perdeu nas noites do tempo, nos recônditos mais sombrios das sinapses cerebrais. Porém algo ficou para sempre. Uma lembrança doce daqueles tempos ingênuos que jamais poderei esquecer.
Enquanto o pano cai.

Autor: Fernando José Carneiro de Sousa - Custódia PE

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