Autora: Alice Gomes
Às vezes, uma lágrima silenciosa marejava os seus grandes olhos cansados, quando da lembrança de sua infância feliz, do
leite quente da mãe, dos exercícios diários, da musculatura se desenvolvendo
depressa, e depois a adolescência arrojada, onde se esmerava em ser o melhor, o
mais rápido, o mais forte. Quem sabe quem seria se não tivesse se esmerado
tanto? – Hoje, talvez mais feliz – pensava . A vida cobra caro de quem se
propõe a tanto e falha em tudo...
Uma
chicotada o arrancava sempre desses torpores temporários. Apressava o passo,
esticando as pernas que já bambeavam. O calor escaldante e a carga pesada
deveriam lhe doer, mas já não doíam. Quase nem sentia mais o próprio corpo. Nem
sabia dizer se vivia a realidade ou algum dos frequentes pesadelos. Comia
quando lhe deixavam e bebia de águas quentes e sujas, mas nem isso lhe
importava. Via, quase indiferente, os músculos cada dia mais flácidos, a
pelagem rareando, feridas abertas pelas picadas de insetos. A velhice não o
amedrontava, o fracasso sim. O medo de
morrer sem sentir a plenitude de ser, ao menos por um dia, livre. Trabalhara
tanto na vida e nunca o fizera para si
mesmo, nunca por prazer. Quando jovem fora muito requisitado, pela sua força e
agilidade, a executar tarefas que agora lhe pareciam todas despropositadas.
-
Se eu pudesse recomeçar o faria mais docilmente – ponderava, nas poucas horas
de descanso que lhe permitiam. – Quanto mais dócil o escravo, mais discreta e
consequentemente mais leve é a sua
escravidão, porque não se exige muito de quem nada ambiciona. Os seres como eu, rebeldes, intempestivos, indomáveis, são os mais
exigidos, mais testados nos seus limites.
Lembrava-se
de quantas vezes ouvira gritarem, das arquibancadas: - Campeão! Campeão! - E era bom, mas efêmero o prazer, porque sabia
que depois das corridas viriam treinamentos mais e mais pesados. Um campeão
deve estar sempre preparado para batalhas maiores e ele sempre estava. Até o
fatídico dia em que se rebelou, e derrubou de cima de si, quem lhe fincava sem
dó as esporas. Ele não conseguia entender porque lhe machucavam para que
corresse mais, se ele sempre soubera executar muito bem o seu ofício. – Tão desnecessárias certas demonstrações de poder que os humanos têm –
ressentia-se.
Depois
do primeiro vieram outros e ninguém mais conseguia permanecer nas suas costas. Apanhara
muito dos que pensavam que desta forma o domariam, mas quanto mais apanhava,
mais certeza tinha de não mais permitir
que humanos o cavalgassem. Enfim, desistiram dele e o venderam a um humano que
decidira usar contra ele mesmo a sua própria rebeldia. Passou a integrar um estranho
grupo de escravos supostamente
indomáveis, que se sujeitavam a simular grandes espetáculos de derrubadas de
humanos. A admiração pela valentia dos colegas, no primeiro dia de casa nova
caíra por terra, ao perceber o artifício usado pelos humanos, para despertar
nos pobres aquela reação. Não era valentia, era dor. É certo que passou a se
alimentar melhor, sem aquelas dietas sofridas, pois se no passado se fazia necessária
uma silhueta delgada nesta nova a aparência deveria ser a de robustez. Porém, só ele e os colegas sabiam o quanto
lhes custava cada refeição e cada pinote.
Quando
já estava muito famoso em seu novo ofício de derrubar humanos, acontecera um
triste fato que, de um lado o libertaria daquela prisão mas, por outro o jogaria
definitivamente na roda dos excluídos: um humano, mais atroz que os
costumeiros, fincara tão fortemente as esporas em seu baixo ventre, que o tiraria
para sempre daqueles humanos espetáculos de horror. Nunca mais o campeão das
corridas! Nunca mais o invencível dos rodeios! E pior, nunca mais o precioso
reprodutor que se orgulhava de ser. Agora tornara-se um qualquer, abandonado às
mais terríveis provações.
Passara
a puxar carroças e, em cima delas, os humanos, juntamente com as mais variadas e
pesadas tralhas . Não havia mais como espernear, não adiantava mais empinar o
dorso, nenhuma manobra o livrava dos seus grilhões. Daquela valentia toda só
lhe restara o cansaço. Pouco a pouco
fora perdendo todos os seus desejos, sobrando-lhe apenas dois: o de ainda poder
correr livre, nem que fosse no seu último dia de vida, e o de conseguir vingar-se de um só humano
que fosse.
Como
tantas coisas inexplicáveis, com ele acontecia sempre que as guinadas de sua
vida fossem à custa de intenso
sofrimento físico. Desta vez não fôra diferente: o seu atual humano sentira-se
mal durante uma das descargas e fôra socorrido por uma multidão, assustando-o
tanto que ele saíra em disparada pelas ruas, carregando consigo a carroça
vazia. De repente, o silêncio e a escuridão. Soubera depois que um caminhão o
atropelara, atingindo fortemente as suas patas traseiras e destruindo
completamente a carroça. Depois o arrastaram para a calçada e o jogaram numa caçamba. As patas doíam muito,
mas a sensação de liberdade lhe enchia de louca euforia. Tanta, que a sua
vontade era a de sair correndo naquele mesmo instante. Não pôde. Adiaria ainda um pouco mais, até que
estivesse em condições de andar.
-
Acho que teremos de sacrificá-lo – disse o veterinário à jovem que o assistia
no engessamento. – Muito dificilmente ele voltará a andar. Uma fratura como
esta pode impossibilitá-lo para sempre de trabalhar.
-
E porque ele deveria ainda trabalhar? – respondeu a jovem. Não vê que ele já
está velhinho, e o seu dono já está morto? Ele não tem mais ninguém no mundo.
Vamos fazer o que for possível por ele e deixar que a natureza decida o seu
momento de partir.
Ah!
Sensações desencontradas passavam pela sua cabeça agora! Tudo o que ele queria
era fugir e nunca mais ouvir a voz humana e, no entanto, era uma humana quem
decidia se ele viveria ou não! – O que ela faria com ele, depois que sarasse?
De que maneira ela o machucaria ainda? Sim,
estava claro para ele que ela estava lhe dando uma chance de viver para,
evidentemente, tornar-se a sua dona, e machucá-lo, de alguma maneira. Mas, se
houvesse uma só chance dele ser curado, então ele faria qualquer coisa para
cooperar e, no momento, permanecer imóvel era a atitude mais sensata. Depois
pensaria num modo de fugir dela. Ou de derrubá-la, na primeira oportunidade.
Os
meses seguintes se arrastaram, penosamente. A jovem humana conseguira que ele
fosse levado para um haras abandonado e o visitava, todas as manhãs.
Colocava-lhe uma coleira, não muito apertada, e o obrigava a fazer curtas
caminhadas, depois o deixava pastar tranquilamente, enquanto ambos tomavam sol.
–
O sol é bom para fortalecer os ossos – dizia-lhe, com voz suave.
–
Sim, eu sei – ele pensava, nunca
desgrudando os olhos da baia, onde permanecia preso o restante do dia. – Eu sei
pra que serve o sol e sei pra que serve um haras. Mas ela está muito enganada
se pensa que eu ainda trabalharei para ela de alguma forma. Nem posso mais e
nem quero. Antes, eu a matarei. – E olhava nos olhos dela, como a implorar que
o deixasse viver em paz os seus últimos anos de vida. Ele não era um assassino.
Não queria ser!
Um
belo dia (sim, aquele dia estava muito belo) ele, já completamente curado, a
esperava em pé e disposto, na porta da sua baia, quando ela chegou. Aquele
seria o seu último dia ali, estava decidido. Iria embora, sem nem saber para
onde, mas iria. Deixaria, desta vez, como agradecimento, que ela o alisasse,
como vinha tentando há meses e, assim que ela virasse as costas, adeus. Tamanha
ansiedade fez com que não se apercebesse que naquela manhã ela não vinha só.
Quando deu pela presença do outro visitante, ele já estava próximo demais. A
primeira reação foi a de pensar num grande coice, mas esperou para ver o que
ele pretendia, porque, afinal aquele humano lhe pareceu ainda mais apavorado do
que ele. E além do mais, era ainda um filhote, e ele jamais faria mal a um
filhote, fosse de qual espécie fosse.
O
filhote humano, assim que o viu, começou a emitir uns grunhidos agradáveis de
se ouvir, e a dizer coisas, com olhares e gestos, que nenhum outro humano
conseguira lhe dizer com tanta clareza e suavidade! – Quem é este? Perguntou,
surpreso, à jovem humana, esquecendo que
ela não poderia entender a sua pergunta. A jovem humana afastou um pouco o
filhote, apreensiva. – Cuidado, meu filho! Ele tem o olhar bondoso, mas ainda
não é confiável. Nunca me deixou acarinhá-lo. Devemos ter paciência, até
fazê-lo entender que pode confiar em nós.
Naquela
manhã nem sentiu que a coleira estava
ainda mais frouxa que o costume, pela dificuldade que a humana tinha em
segurá-la, com o filhote no colo. Na verdade, nem sentiu quando lhe tiraram a
coleira, em algum dos dias seguintes. Também não percebeu quando e porque
decidira ficar. Não se questiona intuição. Aos poucos, à medida em que ia se
permitindo acarinhar, ia também ganhando a liberdade de caminhar sozinho, a
cada dia um pouco mais, enquanto os dois humanos se sentavam no chão (às vezes até se deitavam)
felizes da vida.
Um
dia, eles trouxeram um terceiro humano. Não se assustou, nem se esquivou. Por
algum estranho motivo confiou, afinal, estava solto e não via nenhum laço nas
mãos daquele humano, que estava naquele dia segurando o filhote. Daria tempo de
correr, se necessário.
-
Viu, meu amor? A alegria do nosso filho quando está ao lado dele? Nem parece
aquele serzinho tão perdido em seu próprio mundo, numa vida quase vegetativa,
de alguns meses atrás. Ele se agita tanto quando o vê, que às vezes me dá uma
esperança louca de vê-lo andando, engatinhando que seja, como uma criança
normal. Sei que é ilusão minha ainda, mas quase posso sentir que suas perninhas
estão se enrijecendo. E veja como eles se comunicam com o olhar. Parece que se
tornaram grandes amigos. A mesma doçura, a mesma sintonia.
-
Sim, eu vejo. Agora entendo porque você
se dedicou tanto a este cavalo, já desenganado. Você sempre me dizia que ele
era um verdadeiro campeão e conseguiria. Conseguiu mesmo. Os dois conseguiram. Você pressentiu que ele poderia ser a salvação
para o nosso filho e estava certa. Será que ele deixaria que eu o colocasse no
seu dorso, só um pouquinho? Só uma voltinha, bem devagar?
-
Sim! Eu deixo! Eu deixo! Diga a eles que eu deixo! Você pode, meu amigo, você
pode me cavalgar quantas vezes quiser.
E
foram muitas. E são muitas. E depois das
cavalgadas, quando humanos voltam às suas casas, todo o haras é só seu, todo o
chão e o verde prado são seus, e todas
as corridas, pelos ao vento, são suas.
Autora: Alice Gomes - Porto Velho/RO
Autora: Alice Gomes - Porto Velho/RO
6 comentários:
(Padrão usado em todos os textos comentados para dar a todos um tratamento igual). Fazendo pois uso dos critérios apontados no regulamento, deixo aqui minha impressão: ortografia, gramática e pontuação mostram que o autor ou a autora domina os mecanismos da língua escrita - se há erros dessa natureza, não identifiquei durante a leitura. Um relato simples, convincente, e que abre espaço para a reflexão sobre humanos e seu comportamento, o texto é comovente e envolve o leitor. Parece que está totalmente de acordo com a proposta do concurso (observando o requisito de demonstração de afeto pelo animal). Avaliação pessoal: uma ótima história. Parabéns à autora ou ao autor e boa sorte! (Torquato Moreno)
Esta sintonia entre o animal e a criança é realmente tocante, comovente. Depois de tanto sofrimento nosso herói protagonista encontra um motivo de felicidade: fazer alguém feliz. Parabéns. Marina Alves.
Muito bom. Texto muito bem construído, com imagens literárias perfeitamente coerentes com a narrativa e dentro dos parâmetros do concurso. Parabéns a quem o produziu.
Não sou critica literaria, gosto do que me toca, mesmo assim, a linguagem tem de respeitar certas normas cultas o que vemos aqui., .Este texto remeteu-me a minha infancia. Tínhamos dois cavalos no sitio do meu pai. História bem construida, envolvente.
Parabéns pelo excelente texto
Muito, muito feliz! Agradeço, com lágrimas nos olhos, a todos que me proporcionaram este momento maravilhoso da minha vida................ Alice Gomes
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