quarta-feira, 28 de maio de 2014

Texto: 42 (do concurso) - A mordida do cavalo

Tínhamos um cavalo branco, seus pelos era um tanto amarelecidos, apelidado de Baião, por mim muito querido, pois foi no seu lombo que aprendi os rudimentos da arte de montar, que se notabilizou pelas inesperadas mordidas que dava nas pessoas, e estas mordidas eram inesquecíveis em face da profunda dor que causava e da marca enegrecida que na pele de suas vítimas bordava.
Meu Pai sempre alardeava que cavalo não morde o seu dono, mas vejam só, tudo tem o seu dia, o Baião estava preso no curral e na certa em nada estava gostando desta situação, foi quando o meu Pai passou à sua frente e sem a mínima precaução ou cautela e deu lhe as costas e o cavalo na surpresa atarracou uma violenta mordida na lateral da sua barriga, naquela folga existente entre o fim das costelas e os quadris, mordeu segurando, torcendo, apertando, dava sacudidelas, meu Pai chegou até flutuar no ar em seu desespero para se livrar daquela situação!

Assim que ele se desvencilhou das mandíbulas do cavalo pelo chão ficou a rolar, gemendo, vomitou de tanta dor que sentia, naquele momento tive pena do Baião, conhecendo meu Pai sabia dos seus repentes de fúria quando algo parecido com uma doidice apoderava do seu coração e da sua mente, nestes repentes era capaz das maiores crueldades!

Meu Pai permaneceu por um bom tempo sentado no chão, fazia caretas, suspirava fundo, limpava o suor da testa, e o Baião relinchava como se comemorasse a sua proeza, clamei aos céus por piedade, pois um outro animal muito mais medonho e violento estava se levantando e já sacudia a poeira de suas roupas, pela sua expressão facial tão transmudada sentia-se que algo de ruim estava pra acontecer!

Várias pessoas se aproximaram do curral, todos no agrado de ajudar o meu Pai confortavam, este permanecia calado, carrancudo, foi até ao paiol e trouxe de lá um chicote, naquele sertão não chamavam aquilo de chicote, mas sim de jibóia, uma arma de flagelar, de açoitar pra matar, tinha um cabo forte, o chicote era tanto fino no início, não muito,  alongado, mas pelo meio engrossava, muito, afinando no seguir, terminando com uma lingüeta também de couro a que chamávamos de iapa, e em muito era parecido com uma cobra chamada jibóia, tanto no alongado quanto no formato...

Meu Pai adentrou ao curral girando a jibóia no ar, aquilo produzia um barulho estremecedor, semelhante ao de um vento aloucado, daqueles que precedem as grandes tempestades, este barulho já era o suficiente para causar medo e pavor, ele dava um contragolpe no chicote produzindo um estalido seco, muito parecido com o som de tiro de um revolver calibre trinta e oito, e ele foi girando aquele flagelo e na distância calculada no contragolpe a ponta do chicote no revestrés explodiu no lombo do cavalo com tamanha violência que se viam claramente os pelos brancos do animal espraiarem pelo ar, e no local do impacto de um profundo corte o sangue já marejava respingando, o cavalo no desespero da dor tentou saltar por sobre cerca de tábuas do curral pra do flagelo se livrar, mas azaradamente se encalacrou por sobre a cerca, conseguiu ultrapassar o obstáculo somente com as patas dianteiras, as traseiras desprovidas de um arranque para o seu intento finalizar, patinavam e escorregavam na terra ressequida do curral, assim nesta situação tão crítica e desfavorável não aluía nem pra frente e nem pra trás, as seguidas chicotadas foram do cavalo as forças roubando, foi perdendo o fôlego, esmorecia estonteado, o certo é que por um bom tempo ficou enganchado por sobre aquelas tábuas da cerca do curral, quando uma violentíssima chicotada estralou na tábua do seu pescoço fez com que o Baião arriasse de vez, a dor desgovernou  o seu senso, fraquejou as pernas traseiras, rolou lateralmente por sobre a cerca desabando no chão com tamanha violência que na poeira levantada pungia surdos clamores de piedade, o animal sangrava pelas narinas e pelos cantos dos olhos, tremia por inteiro, resfolegava, uma respiração apertada como se de uma onça tivesse espavoridamente debandado por léguas e léguas.

Chicoteando sempre, meu Pai conversava com o cavalo como se conversasse com um filho seu justificando a crueldade do castigo, por fim satisfeito na vingativa proeza sua desumana, ele se afastou cantarolando bobices na forma de uma canção, nem sei se aquilo pode ser chamado de vingança...

Nunca mais o Baião foi mesmo, diziam que ele ficara aguado pela surra que levou, se entristeceu, foi se definhando a olhos vistos, certo dia vendo inúmeros urubus pousando no alto de um pé de angico, de longe vi uma mancha branca no chão, tive assim a certeza que o Baião havia morrido. Falei pro meu Pai do acontecido, e ele respondeu que tudo que vive um dia morre!
Não mais tocamos neste assunto mesmo que nas lembranças avivasse, nem sei se o meu Pai disto se arrependeu, se arrependeu, arrependeu somente em seus arrependimentos, pra ninguém no partilhar desabafou, mas no findar dos seus dias, calado, pensativo, abatido por um enfisema pulmonar resultado de décadas e décadas do hábito de fumar, sentia que os seus pensamentos na distância de muitas distâncias campeavam, e eu ficava a imaginar se do cavalo ele estava a se lembrar...

4 comentários:

Anônimo disse...

Incrível a habilidade com as palavras. Tudo no exato lugar, para criar no leitor a sensação de vivenciar, visualizar a narrativa. Muito bem escrito. Parabéns. Marina Alves.

Anônimo disse...

(Padrão usado em todos os textos comentados para dar a todos um tratamento igual). Fazendo pois uso dos critérios apontados no regulamento, deixo aqui minha impressão: ortografia, gramática e pontuação: se há erros graves desta natureza não percebi durante a leitura, porém o texto necessita de pequena revisão. A história é triste, pela crueldade com o animal, porém muito bem contada, retrata a realidade e por isso poderá causar diversas reações nos leitores, do choque à reflexão. Não saberia dizer até que ponto estaria dentro da proposta do concurso (observando o requisito de demonstração de afeto pelo animal), porém não cabe a mim julgar esta questão, apenas deixar um comentário sobre os textos. Avaliação pessoal: entre bom e muito bom. Parabéns à autora ou ao autor e boa sorte! (Torquato Moreno)

Alberto Vasconcelos disse...

Muito bom texto, com imagens literárias bem definidas e perfeito domínio da linguagem. Pequenos deslises na pontuação serão facilmente contornados. O texto não está perfeitamente encaixado nos parâmetros do concurso. Parabéns a quem o produziu.

Anônimo disse...

Arrepiante! Se a experiência vivida pelo autor, em relação ao animal, o marcou tão profundamente, como está óbvio que o marcou, então, penso que o conto está dentro da proposta do concurso. Gostei muito. - Alice