quarta-feira, 11 de junho de 2014

Texto: 37 (do concurso) - Travessuras de Pedro e do gato Sherlok

(Conto bom-despachense de finados, baseado em fatos reais) 

Sou um cidadão bom-despachense, já passado dos 60 anos, nascido lá pras bandas do Engenho do Ribeiro e há muitos anos fora de minha terra natal. Na adolescência, fui estudar num seminário de padres de uma cidade na Zona da Mata Mineira         
Veja você, prezada leitora, que na cidade onde eu estudava para ser padre, nos meados do ano, aconteceu de falecer uma das mais ricas, religiosas e queridas personagens locais.
Filantropo por natureza, ele era sempre o primeiro a encabeçar as doações para as obras da paróquia. Quando veio a falecer aos 89 anos, na boca de uma noite de quinta-feira, a cidade inteira parou pra homenagear seu grande benfeitor.
Naquela época, Frei João, já idoso e com dificuldades para subir à torre da igreja vinha preparando-me para ser seu substituto como sineiro da matriz. Um ofício e uma arte muito importantes naqueles tempos, porque os sinos das igrejas e das capelas do Brasil, até meados do século XX, eram o grande meio de comunicação temporal e espiritual para as populações dos povoados e de pequenas e grandes cidades. Eles repicavam festivos no natal e nas aleluias ou para receberem excelências, eminências e personalidades que visitavam o lugar. Ressoavam e ribombavam compassados, soturnos, ao anunciarem a morte de pessoas. De qualquer pessoa que se finasse, fosse ela criança, adulto ou idoso, pobre ou rica.
Naquele dia, falecera conforme já lhes contei, um homem de elevada envergadura moral da cidade. A igreja quis retribuir com zelo a fidelidade de seu fiel servidor. Frei João ensinou-me e disse-me que eu devia entender uma coisa: É que o sino a gente não bate nem toca. Não!  Sino, a gente o faz cantar nos dias festivos e o faz chorar nos acontecimentos tristonhos.
Ordenou-me ele que eu subisse à torre e até o sol se esconder, por ordem do vigário padre José, eu deveria fazê-lo soar. Soar por vezes repetidas, no toque grave e rouco para defunto: dão ...dão...dão. E no dia seguinte, eu ficaria de plantão na torre e  executaria o mesmo serviço desde o momento em que o féretro saísse de sua residência até a matriz.
Posteriormente à missa de corpo presente, que eu continuasse minha tarefa, de modo que o badalar tristonho prosseguisse até o momento em que o corpo descesse à sepultura. Fato que eu poderia acompanhar passo a passo, uma vez que o cemitério era próximo da igreja e, lá do alto da torre, ser-me-ia dado assistir a este último momento do falecido ilustre.
Ora orgulhoso, ora um tanto entediado, fui me desincumbindo da missão, modéstia à parte executada com competência. Todavia já nos finalmentes, um ato totalmente impensado e lamentável aconteceu. Os meus prezados leitores e as caríssimas leitoras sabem como é a cabeça de um adolescente. Seus neurônios são como os relâmpagos ligeiros e irresponsáveis que riscam os céus: pensam pouco e agem sem raciocinar. Ali estava eu entediado e entorpecido, física e mentalmente, por aquele som monótono de compassadas e repetitivas badaladas Mas não estava só. Deitado preguiçosamente, aos meus pés, encontrava-se o Sherlock.
Sherlock era o gato de estimação da meninada do colégio. Lá aparecera e fora adotado por nós. Sherlock estava sempre comigo, comigo estava naquele fúnebre dia. Eu badalando o sino... dão... dão ...dão e ele dormindo este sono frouxo e relaxado que só os bichos gatos sabem dormir.
Num dado momento, meu cérebro oco e irresponsável parou de vez de pensar. Lenta e maquinalmente, sem raciocinar nas conseqüências de meu ato, peguei a corda de um dos sinos e com ela amarrei o felino pelo meio. Na barriga. Entre as quatro patas. Sonolento, ele, de início, não reagiu. Aceitou tudo passivamente, mesmo tendo eu apertado muito a laçada. Porém, de repente, o bichano se deu conta do que eu lhe havia feito. Soltou um miado agudo e nervoso, unhou-me fortemente o braço. Endoidou-se. Escapuliu-se de minhas mãos e iniciou uma ciranda louca no espaço, sob o sino. E este sino começou a repicar doida e festivamente pelos pulos loucos do Sherlock, atado a suas cordas. Com a mão direita, tentava detê-lo... em vão ...  com a esquerda prosseguia batendo o toque de defunto no segundo sino. Foi neste dia que, em parceria com meu amigo bichano, produzimos a mais inusitada das sinfonias fúnebres jamais vistas e ouvidas em qualquer tempo ou lugar do planeta.
O sino dele, com seus movimentos bruscos e circulares, emitia sons travessos em alegres repiques que não condiziam de modo algum com o momento de tristeza que vivia a cidade. No segundo sino, no fundo destes sons alegres, eu marcava o compasso com as notas musicais pesadas emitidas pelo toque de defunto.
O cemitério ficava perto. Com um olho no gato que esperneava preso às cordas e o outro na necrópole, percebi que estávamos no momento exato da descida do corpo à sepultura. Então vislumbrei que a cerimônia fora interrompida. O zum-zum-zum do povo chegava aos meus ouvidos, abafados pelo barulho do bronze a badalar.
Só dei conta de mim, quando consegui enfim deter a fúria musical do ensandecido Sherlock. Logrei, então, soltá-lo de suas amarras e ele sumiu-se, escadas abaixo, na maior e mais desesperadas das velocidades que um felino pode alcançar.
 Neste instante, percebi que a torre se enchera de gente: o padre superior do seminário, um dos homens mais bravos que conheci. O frei disciplinador, colegas curiosos, uma pá de gente. O padre superior e o frei disciplinador, fora de si, gritavam:
 –Um absurdo! Um desrespeito inominável!Uma ofensa à memória daquela santa e venerável criatura! Ah! Meu Deus , meu Deus! Como a paróquia vai se explicar ao povo por tamanho vexame!!!
Senti o mundo despencar sobre minha cabeça. Se eu pudesse... se ela não estivesse tão longe, lá em Bom Despacho, eu clamaria por minha mãe e pularia no colo dela, à busca de proteção para meus apertos.
Ato contínuo, pegaram-me pelas orelhas, arrastando-me à sala do conselho, onde me deixaram de castigo à espera de futuras e duras penas a que, sem dúvida, eu seria submetido... Talvez até a temida e indesejada expulsão ...Passaram-se horas que me pareceram séculos. Eu pensava: ─Ah! Meu pai, o que será de mim!
Finalmente, já no ocaso do entardecer, a porta da sala se abriu. Quem entrou, acompanhando Frei João, foi o Padre José, o vigário... Ele era mais calmo, mais compassivo que o padre superior. Senti-me parcialmente aliviado. .
O padre José me passou severas repreensões, mas num tom manso e até misericordioso para com meu erro homérico. Ponderou-me o bom sacerdote que, pela gravidade daquilo que  acontecera, eu me tornara uma “persona non grata” ao seminário e à cidade. (Nesse momento, percebi que os olhos de Frei João lacrimejaram). Afinal eu, com a colaboração do Sherlock, fora o responsável pelos repiques festivos e ofensivos que, completamente inoportunos, soaram como uma comemoração à morte do sepultado defunto.
A igreja precisava dar uma satisfação à população e à ilustre família do finado e ao povo em geral que o respeitavam tanto. Assim seria de bom alvitre e aconselhável que eu fizesse minhas malas, pois, no dia seguinte, bem de manhã, seria transferido para o seminário da capital.
Quanto ao gato Sherlock, este seria definitivamente banido e proibido de freqüentar o seminário e de gozar da convivência dos alunos.
Na saída, o bom Padre José voltou-se e ainda brincou comigo: ─Agora, meu rapaz, como sineiro, você e o gato Sherlock considerem para sempre encerradas suas carreiras. Nesse assunto, vocês são dois desastres ambulantes.
Na manhã seguinte, estava na estação. Quando olho, quem estava ao meu lado? Ninguém mais que o gato Sherlock, meu companheiro de agruras e travessuras. Ele já ia entrando no trem, certamente para partir comigo e comigo se juntar em meu exílio. Fiquei até feliz com seu companheirismo. Mas aí aconteceu algo que me fez perder para sempre meu bravo amigo e colega sineiro. Nunca mais tornei a vê-lo. Neste momento, o sino da estação, secundado pelo sino da maria-fumaça, bateu anunciando a partida do trem. O pobre Sherlock, ainda traumatizado com as fatídicas badaladas do dia anterior, soltou um miado de agonia e pavor. Eriçou os pelos da cauda até os bigodes, e riscou no mundo, bem longe daquele som de sino, que na tarde anterior, nas torres da matriz de Manhumirim, marcaram nossas vidas e nos separaram para sempre.  

6 comentários:

Anônimo disse...

Engraçado e bem contado. -- Alice

Anônimo disse...

(Padrão usado em todos os textos comentados para dar a todos um tratamento igual). Fazendo pois uso dos critérios apontados no regulamento, deixo aqui minha impressão: ortografia, gramática e pontuação mostram o domínio da norma, porém o texto precisa de pequena revisão na pontuação (talvez apenas falhas de digitação). Há que revisar também os trechos que se referem ao interlocutor: no começo se refere a uma única leitora e depois a um número no plural (talvez tenha sido apenas um engano). Uma história interessante, muito bem construída e contada de modo que ameniza as traquinagens do protagonista com o gato, incluindo o final, que toma um rumo distinto da morte do felino e encerra a narrativa num clima bom. Parece estar dentro da proposta do concurso (observando o requisito de demonstração de afeto pelo animal). Lembrando que estou apenas comentando os textos sem compromisso. Avaliação pessoal: ótimo texto! Parabéns à autora ou ao autor e muito boa sorte! (Torquato Moreno)

Alberto Vasconcelos disse...

Texto com enredo e imagens literárias bem construído, apesar de algumas incorreções. Está dentro dos parâmetros do concurso e o final é surpreendente. Parabéns a quem o produziu.

Anônimo disse...

rsrs... Dei boas risadas. Irreverente, numa leveza boa que marca os bons causos mineiros. Parabéns!Marina Alves.

Jussara Burgos disse...

Excelente texto,muito bem escrito. Dei boas risadas.Parabéns

Anônimo disse...

Lendo e rindo, imaginando a situação dos dois protagonistas Mil vezes ótimo. Por mim já ganhou rsss. Conceição Gomes.