– Bicho sonha?
Insuspeito leitor, pelo nível etílico da pergunta você não precisa ter lido as
encrencas do velho detetive Sherlock Holmes, pela enfumaçada Londres de dois
séculos atrás, para deduzir que ela foi feita em ambiente descontraído, sob o
ponteado da viola caipira do Renato Teixeira, à volta de uma mesa recoberta por
copos, garrafas, pratos de tira-gosto... Onde meia dúzia de senhores
desocupados desfrutava a sempre agradável companhia de mulheres, aos risos e
dengos, em plena madrugada!
Somados os l7 graus de
álcool da cerveja aos 42 da cachaça, não consigo me recordar quem levantou a
questão, que na verdade era mais uma desculpa para a gente atrasar a saideira.
Mas vi bem que, por três vezes, a cozinheira havia saído de seus domínios –
botada a cara na janelinha por onde se passavam os comes e bebes –, avaliando o
que deveria acrescentar ao cardápio que provocasse disenteria àqueles riquinhos
metidos a besta, daí lhe rendendo uma horinha a mais de sono, porque ao dia seguinte
tudo recomeçaria. Lembro, todavia, que misturando datas e nomes, alguém solenemente
gaguejou: – Uai, cachorro sonha!
Aí, o sabichão emendou
com o caso de um cachorro do velho Juca Rufino – fazendeiro e caçador afamado
na banda de cá do rio São Francisco –, que em sua matilha contava o tal Japi.
Cão de faro fino e latido intimado que caçava como nenhum outro, faltando só
conversar em francês! Aliás, por conta deste nome meio bichoso – Japi, o velho
Juca vira e mexe tinha que dar explicação. E sentado, cruzando uma perna sobre
a outra, na maior pachorra do mundo, que a prosa ia longe, acendendo um pito de
palha esmiuçava: – Cachorro caçador tem que ter nome curto, não acabando com
‘inho’ e sem dar apelido, por conta de na hora que a gente estumar ele, o
danado não cambar de arrepio, pra longe da caça.
Tinha razão o
fazendeiro-caçador. Dando-lhe fiança, meu avô e seu compadre Guilhermino,
companheirão naquelas conversas que duravam do almoço até pra depois do sol
entrar, que embora não fosse chegado a caças entre matagais e esconsos mantinha
em sua fazenda, por capricho, certo cachorro ali esquecido por uma comitiva de
boiadeiros, que para facilitar o andamento do caso ganhou o nome do dono da
boiada: – Florisvaldo! Abreviado por alguns ficou Flor; esticado por outros
virou Valdinho. Ambos, certamente, comprometendo a cãozência do cachorro.
A cozinheira já havia
posto todas as vassouras do bar, em pé, atrás da porta – mandinga infalível
para mandar visitas indesejáveis de volta para suas casas; o garçom desligara quase
todas as lâmpadas, e em último recurso nos serviu cerveja quente; e os pedantes
fregueses com suas respectivas companheiras, firmes... Essa frescura de “traz
aquela estupidamente gelada, pra gente pedir a conta”, de madrugada, é folclore.
Se bicho sonha, Sherlock
não esclareceu. Mas que o cachorro foi o primeiro animal selvagem domesticado
pelo homem, e desde aí chamado amigo fiel, é verdade. A estória do Japi diz
tudo. Ele não apenas sonhava como tinha delírios; e às madrugadas, de olhos
fechados, acuando baixo, era visto negaceando pelos cômodos da fazenda Santa
Rosa, como se tivesse achado um bando de codornas, num capão de mato! Por detalhes
assim, às vezes, fica difícil não acreditar em caso contado por caçador.
7 comentários:
Uma excelente narrativa! Sem dúvida é daquelas que prendem o autor do início ao fim.Gostei muito! Parabéns ao autor ou autora do conto.
Texto bem escrito e muito divertido! Parabéns! Lúcia Beatriz da Silva.
O que revela um texto? Seria a consciência do tempo, a percepção histórica, ou as recordações? Sem dúvida, algumas narrativas nos remetem ao tempo e espaço sempre definindo a esfera sócio/cultural de um determinado lugar mostrando pequenas coisas que fazem parte do cotidiano das pessoas. Com esse conto o autor usou de vasto repertório linguístico e nos fez participar de seu discurso bem agradável, com humor e leveza conduziu o leitor até o final. Parabéns a quem escreveu tão expressivo texto!
Dom Carlito.
(Padrão usado em todos os textos comentados para dar a todos um tratamento igual). Fazendo pois uso dos critérios apontados no regulamento, deixo aqui minha impressão: ortografia, gramática e pontuação: se há erros graves dessa natureza não percebi durante a leitura. O texto é interessante e está muito bem escrito, porém, ao buscar o centro da narrativa, a história que está sendo contada de fato, volto a me perguntar: estaria o texto dentro da proposta do concurso (observando o requisito de demonstração de afeto pelo animal)? Lembrando que estou apenas comentando os textos sem compromisso. Avaliação pessoal: sem dúvida é um causo muito bom. Parabéns à autora ou ao autor e muito boa sorte! (Torquato Moreno)
Texto de excelente qualidade, mas fora dos parâmetros do concurso. Parabéns a quem o produziu.
Comentar é uma coisa, julgar é outra. Julgar o texto é tarefa de individual de todos conforme a ficha já encaminhada. Se o texto está de acordo com o concurso também é tarefa de quem julga. Comentar, tudo bem! Julgar cabe aos participantes do júri de acordo com as regras pré-estabelecidas.
Um texto leve que vai levando a gente no embalo, coisa de quem sabe muito bem ganhar o leitor só na base do "como é que será que vai acabar isto?". Quando vem o desfecho, a gente fica com dó de não ter mais um tantinho. Adorei a leveza e a condução. Parabéns ao autor ou autora. Marina Alves.
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