quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

A Quinzena do Autor: Conceição Gomes

Autora: Conceição Gomes

Conceição  Gomes, paraense nascida na cidade de Irituia, Pará,  em 13 de agosto de 1944. Formada em Pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará. Reside em Curitiba desde 1978. É casada, dois filhos. Poetisa amadora, escreve a partir das observações de seu entorno, seja o mais próximo ou o mais distante. Escreve para o Portal do Poeta Brasileiro, para os Blogs Gandavos e BVIWtecendoletras, para o site Recanto das Letras e para sua página no facebook. É membro da Academia Itapoaense de Letras-Itapoá, SC  e da Academia  Nacional de Letras do Portal  do Poeta Brasileiro. Já participou de   cinco antologias. Escrever para ela, é manter sua sanidade emocional  e um dos projetos de vida.Que viva em cada um de nós, a poesia.

ARMADILHAS.

Apaixonara-se pelo homem grisalho desde a primeira vez que o vira  no umbral do ateliê de artes. Passava por aquela rua todos os  finais de tarde  e depois daquele primeiro dia, ele estava sempre na janela, por trás das cortinas rendadas. Ela fingia não vê-lo, passava altaneira e inacessível, mas o coração denunciava o quanto desejava que ele a notasse. Era o seu homem!.
O homem grisalho tomara-se de amores pela moça bonita, orgulhosa e distante, que passava todos os finais de tarde pela sua janela. Quanto sonhava em ter um olhar dela, por mais fugidio que fosse... Era a sua mulher!
Naquela latência, em que ambos dormitavam o amor que sentiam um pelo outro, imaginavam mirabolantes  estratégias para  um encontro. O homem grisalho imaginou então que se deixasse de aparecer na janela, a moça bonita sentiria sua falta e quem sabe, entraria no ateliê. Então, uma bela tarde, ele não apareceu. A moça bonita afligiu-se! Observou as cortinas embaladas pelo vento e teve uma idéia. Ateou fogo em uma delas. E fingindo o mais desesperado clamor, entrou inopinadamente no ateliê para avisar o homem grisalho do risco de incêndio. Os dois apagaram o fogo. Em sinal de agradecimento, o homem grisalho convidou a moça bonita para um café. E ali, sentados em frente um do outro, olhos nos olhos, sentimentos em ebulição, sentindo o fogo da paixão acender-se, ambos sorviam  lentamente o café,    cada um pensando: armadilhas funcionam. A minha funcionou!

CAIXA DE GUARDADOS.

Era uma caixa bem grande, 60 x60 mais ou menos. Lá eu punha todo tipo de correspondência recebida: cartas, bilhetes, convites e cartões de natal
Quando aposentei fui revirar a tal caixa. Não tive coragem de jogar nada fora. Separei o que estava datado  por mês e ano e coloquei em álbuns. Tenho cartões de natal desde 1967, quando deixei Belém para morar em Fortaleza. Parte da minha história está nos bilhetes e mensagens que recebi de meus alunos, na época em que ministrava cursos e treinamentos de capacitação profissional.Outra parte está nos cartões de natal e carta dos amigos. Em outra  caixa menor estavam os certificados,  quase quatrocentos...Estão todos em álbuns, cuidadosamente catalogados. Vocês podem perguntar: por que ela guarda tudo isso? Não sei muito da minha história com avós, tios e primos. Eu era muito criança quando perdi minha mãe e já não tinha avós. Meu pai se foi quando eu era adolescente e já estava  morando longe dele. Um dia meu filho mais velho perguntou quem eram seus antepassados e eu não soube responder.Ainda quero fazer uma pesquisa no Cartório da cidade onde eu nasci para resgatar meus ancestrais. Por estas razões, fiz o álbum dos filhos, especialmente do mais novo.Lá estão os registros de nascimento meu e do meu marido, certidão de casamento, batismo, assim como dos avós paternos, o que pude conseguir.Minha neta, a primeira e mais jovem membro da família já foi nomeada por mim, a guardiã desses registros.  Guardei e já organizei do mesmo jeito, todas as correspondências recebidas pelos meus filhos.Até bilhetinhos de amigo secreto estão em álbuns. Espero dar este presente quando Mariana completar dez anos, se eu ainda estiver por aqui, o que espero com certeza.Também guardo com carinho uma Bíblia  Ilustrada Para Crianças. Vou encaderná-la para ser o presente de um ano dela. Não me importo de ser chamada de saudosista. Eu sou e assumida!

Nota: Já temos o segundo neto e a Biblia já foi entregue para  Mariana.

RECORTES  DA VIDA.

Já haviam se passado mais de quarenta anos desde que havia deixado sua cidade natal para acompanhar o marido  em suas várias transferências em função da carreira militar.Mas sempre que  voltava para visitar os familiares retornava às ruas de sua Cidade Velha, o bairro onde havia morado até o casamento. As calçadas com suas pedras portuguesas lhe eram tão familiares quanto o calor que lhe aquecia o corpo todos os dias. E as fachadas das casas, com os azulejos também portugueses...Gostava de deslizar os dedos pelos  relevos dos desenhos artisticamente dispostos e inalterados pelo tempo. Também se punha a imaginar o que acontecia nos velhos casarões geminados com suas janelas venezianas fechadas...Nos seus tempos de menina e de jovem, não havia medo em deixá-las abertas. Agora, isso não era mais possível. E na sua caminhada, buscava o velho casarão onde havia nascido.  Sentia-se feliz em saber quantas pedras compunham a calçada , da cor das suas janelas e do  número colado à parede. Sabia  das cores que compunham os azulejos.  E ao encontrá-lo, felizmente tombado pelo patrimônio histórico, seu coração sorria aliviado. Ali estava parte de sua história, um pedaço de sua vida. Adentrava em seu  interior buscando o abraço de  seus bem quereres que já estavam a sua espera.

COMO NÃO SEI REZAR...

Que  mal pergunte a quem de direito, o que há de novo na midia televisa que não seja  a espetacularização da violência, a mediocridade dos programas que fazem apologia a bundas e peitos e as mentiras calculadas dos politicos em desmentido s de suas falcatruas? Teremos nós  de ser chamados de alienados se recusarmos assistir tais noticias e tais programas? Por estas e por outras, estou pulando essas noticias, prefiro ligar meu três em um e ouvir algo  que me toque o coração como por exemplo o encontro do caipira pirapora com o seu Deus quando ele diz,  “como não sei rezar, só queria  trazer meu olhar, meu olhar “ou ainda,  “como vai você, que já modificou a minha vida? E para agraciar amigos dizer,  “entre, fique à vontade , a casa é sua.”..E mandar um recado: “vai minha saudade e diz a ele, que sem ele não pode ser, diz-lhe numa prece, que ele regresse, que eu não posso mais sofrer”... O olhando para minha netinha,   murmurar para seu coraçãozinho,  “Dio como te amo”. Para os amigos distantes  cantar , “tô  com saudade de tu meu benzinho”. E daqui há pouco vou escutar Alvorada Voraz e dançar neste final de tarde comigo mesma. Ou quem sabe, um Bolero de Ravel...

DEPOIS DO SUSTO, A SURPRESA.

Quando o casal adentrou  no consultório do Dr. Bento Damasceno, o médico teve uma surpresa fora do comum. Jamais, em toda a sua vida profissional vira duas pessoas de tamanha feiúra física.Os bonecos dos carnavais de Olinda perdiam de longe para o marido e a esposa, em tudo assemelhava-se  a Madame Min, aquela das  histórias em quadrinhos. Passado o susto, o médico, especialista em reprodução humana, acomodou o casal e iniciou a  entrevista inicial. Casados há mais de dez anos, já haviam tentado todos os tratamentos possíveis  sem  nenhum sucesso. Já estavam passando da idade  para ter um filho e não podiam esperar mais. Queriam uma criança! O Dr. Bento era a última esperança. Adotados os  procedimentos para a inseminação artificial, a mulher engravidou e durante toda a gestação foi acompanhada pelo médico, religiosamente. Passados os nove meses, o próprio Dr. Bento fez o parto. Estava curioso para ver o rosto da criança. Quando o bebê, uma menina, nasceu, Dr. Bento não podia acreditar no que estava vendo. Jamais vira uma criança tão  bela! Mais tarde, foi ao berçário. Por muito tempo,  admirou aquele rostinho cor de rosa, os cabelos em cachos, tal qual os que vemos nas gravuras dos anjos, as mãozinhas   como que esculpidas pelo cinzel de um artista...Aquela criança, nascida de pais tão feios, era de uma inusitada beleza. E como se percebesse  que  estava sendo admirada, a menina abriu os  olhos de um azul anil e sorriu levemente, o mais belo sorriso que  ele já havia visto. E o médico, não contendo a emoção, chorou  as lágrimas  mais felizes de toda  sua vida.

DAS  NOITES  E  AMANHECERES.

Nada  mais romântico do que observar um casal  banhado por uma noite enluarada caminhando  em paradisíaca praia, entre calientes beijos e sôfregos abraços, matizes da esperança  na infinitude do amor.
Inebriante é a atmosfera de  aposentos incensados pela paixão, entre lençóis de seda, dos corpos que entregam-se  à dança  do acasalamento e pedem pela eternidade da  noite.Quem vive ou viveu, sabe.
Suaves são as noites em que os sonhos acalentam o  sagrado sono do repouso e os felizardos podem  rechaçar a indesejável insônia. Serenidade para o  próximo amanhecer.
Envolvente é o encontro de amigos   embaixo de caramanchões, ao som do violão que dedilha  canções   para acalentar  noites de saudades e esperanças. A música é companheira contagiante.
Interessantes são as noitadas boêmias nos bares e becos, onde os amantes do bom copo deságuam  sonhos ou mágoas.  Para eles, a noite será sempre uma criança.
Por tudo isso e muito mais, quase podemos ouvir os protagonistas  desses cenários,  dizerem em prece sussurrada para que os anjos atendam: vamos viver intensamente esta noite, antes que o dia chegue.  E nesses sagrados ou profanos  momentos pode-se até desejar a finitude. Impossível porem, fugir da realidade do amanhecer de cada dia. Ele nos aguarda e nos diz compassivamente: acalma-te! Novas noites e novos amanheceres virão. É   assim o ciclo da vida, dos dias e das noites.

MUROS DO INCONSCIENTE

Muitos de nós somos especialistas em criar muros onde aparecem nitidamente pixados a intolerância, o preconceito, o amargor do silencio, a arrogancia, a maledicencia e o egoismo...Essses muros tornam-se intransponíveis com o passar do tempo...Alem destes, temos outros: o medo,  a insegurança, a  dificuldade para perdoar... Por algum motivo erguemos esses muros e eles  vão ficando semelhantes as muralhas de pedras das grandes fortalezas. É possível derrubá-los?

Desconfio  dos determinismos de qualquer natureza assim como da imutabilidade do caráter humano. Acredito que apenas o conhecimento é incapaz, em larga medida, de lapidar o individuo. Acredito sim no auto conhecimento e no exercício consciente  para a mudança. É assim que construimos muros de palhas, menos resistentes e mais fáceis de serem transpostos quando por  alguma  razão pisamos feio na bola.    Falando em  muro lembrei-me  de um que dividia o quintal da casa  de meus pais  com o do nosso vizinho, o   sinistro SR. Pedro Banana. Era feito de palhas da palmeira do açai . Era muito frágil, mas eu e minhas irmãs  não ousávamos transpô-lo. Dizia-se que a falecida esposa do SR. Pedro estava sepultada no quintal. Talvez fosse tudo invencionice de meus pais para impedir que fossemos bisbilhotar onde não éramos chamadas e impor-nos limites. O medo era maior que a curiosidade .Para mim, transpor o muro significava encarar a falecida como a guardiã da propriedade do marido.     Com o tempo aprendi que a   fragilidade dos muros de palha pode revelar-se  nossa fortaleza  à medida em que temos coragem para  desconstruí-los em busca  da nossa verdade interior. 

VESTIDO VERMELHO.

Era vermelho, de  seda pura, o  mais belo que já havia possuído. Guardava com todo carinho, embrulhado em papel celofane. Aquele vestido guardava recordações de um tempo  em que os toques sensuais em corpos  aprendizes nas artes do amor  eram  sutis e refinados. Gostava de lembrar das mãos amadas deslizando através da seda, em seu corpo ávido de desejos.E no tempo certo, lembrava da primeira vez em que fora despida lenta, suave e apaixonadamente pelas mãos do amor amante e do vestido vermelho jogado no chão. Entretanto,  a lembrança que mais lhe marcava a alma era  daquele dia em que pedira para a mãe passar o vestido. Iria a um baile e já antevia os momentos de prazer. Por um descuido, a mãe passou o ferro muito quente e queimou um pedaço do vestido. Desolação total, choro, desespero, raiva! E a mãe calmamente:  vou remendar essa tolice, para de chorar! E com  um retalho rendado da mesma cor do vestido, aplicou um coração bem no pedaço onde havia o estrago do ferro quente e noutros pontos estratégicos .O vestido ficou até mais bonito do que antes e no baile,  não faltaram os elogios para o que hoje em dia chamamos de customização ou reciclagem.

CONVERSANDO COM O LEITOR.

Tenho um critério muito particular para gostar de ler algo: eu preciso conversar com o autor. Dificilmente consigo essa sintonia se o texto for hermético e utilize muito a meta linguagem ou as agendas ocultas, ou seja, as entrelinhas. Isso é para intelectuais. Para o leitor comum, só é possível mergulhar no texto  se este traz respostas ou questões que agucem a imaginação e lhe façam visualizar as cenas descritas.Claro, não estou me referindo a livros técnicos, estes lemos por obrigação, para alicerçar nossa profissão. Refiro-me a romances, artigos, crônicas,  ensaios etc e até mesmo na poesia. Outro cuidado, é o respeito a norma culta. Não precisa ser empolado, mas, concordância verbal, grafia correta,  linguagem enxuta, sem prolixidade, são  outros critérios  que me agradam. Talvez um outro critério seja escolher o público-alvo da leitura. Não daremos a uma criança de dez anos, um romance de Jose Saramago. Monteiro lobato seria mais adequado.

CARTA PARA MARIANA.

Hoje é 24  de dezembro de  2030. Voce está com 25  anos. A mesa para a ceia de natal  está posta. Tenho certeza de que todos estão em plena alegria.  Com certeza  está casada e já me deu bisnetos. Não poderia deixar de lhe perguntar se  você guardou os  álbuns de fotografias, os CDs,  aqueles albinhos em que estavam todos os cartões postais e de natal que eu colecionava e que deixei para você ser a guardiã? E os discos de vinil?  E  seu pai, o meu Jean e Ronise, sua mamita?  Como estão? Voce ainda   tem  cachorros? Lembra do dia em que disse se papai e mamãe brigassem  com você,  iria para “Gaciosa” e não voltava nunca mais?  Está realizada na profissão que escolheu? Lembra quando disse que não queria ser professora?  Você só tinha três aninhos. E eu lhe chamava de minha morena de olhos cor de mel? Voce era linda!  Ainda vai na Graciosa? E seu tio Luiz por onde anda? E Rodolfo, com seus belos olhos azuiz? Roni e  Queca já estão velhinhos? Não, acho que não! Com sessenta e poucos anos, já não se é velho. Isso era coisa do século XX. Minha princesa, lembre  sempre do quanto eu e seu Vô amávamos você. Deixo-lhe um abraço, deste distante ano de 2013, em uma noite em que a lua banhava o meu jardim e eu pensava na minha finitude. A única coisa que eu pedia naquele momento era que Deus me permitisse ver você e Rodolfo completarem quinze anos. Sua vò  Conceição.

MUDEMOS   NÓS.

Imaginemos uma cidade com 12 milhões de habitantes dos  quais dez milhões fumam apenas uma carteira de cigarro por dia. São  quarenta milhões de  pontas de cigarros jogadas nas ruas.   Para onde vão esses filtros? Para os esgotos,  contribuindo para o entupimento dos bueiros. Quando você está na rua e após pitar o seu cigarrinho, onde joga a bituca? Tenho uma amiga que anda com um potinho de maionese na bolsa. Quando apaga o cigarro, joga lá dentro a  mal cheirosa bituca.

Em São Paulo, os serviços de coleta não dão conta de  tirar o lixo jogado  nas ruas, sem nenhum cuidado  e muito desse lixo vai para os rios da cidade. A prefeitura poderia colocar enormes caçambas coletoras, mas adiantaria?  Quando apenas uma parte  da população faz o dever de casa e a outra é reprovada no quesito responsabilidade pessoal e social é difícil ter uma cidade limpa. No final das contas, pagam  todos  pelo ônus das mazelas ambientais.

Em uma cidade nortista,   vi um feirante  jogando toda espécie de detritos  bem na entrada da feira e no chão, fazendo a festa dos urubus. Nessa mesma cidade, depois de quarenta anos persiste uma rua com um enorme valetão, cujo acesso para as casas é feito por umas pontes de madeira. Penso que  não houve mobilização para mudar a paisagem da rua.

Gostaria muito de escrever romanticamente sobre como mudar a cidade, a minha cidade, mas não saberia fazer isso hoje diante de tanta indelicadeza por parte dos habitantes  para com suas cidades.Para que haja mudança, nós é que precisamos mudar. Há muitas estratégias para provocar a mudança. Um delas é começar pelos hábitos saudáveis  e ecologicamente corretos, entre os quais, dar um destino  correto para as sobras do famigerado cigarro. Outro, é  dar o  destino adequado ao lixo, seja  orgânico ou reciclável. Ter tambem uma sacolinha dentro do carro, evita-se jogar lixo na rua. Quem agradece? O meio ambiente e todos nós.

ONDE ANDAM A INOCENCIA E OS INOCENTES?

Em se tratando de seres humanos penso que os inocentes só podem ser encontrados nos berçários  das  maternidades do mundo inteiro.Esses ainda não foram contaminados pelas intrusas conveniências da vida que nos levam gradativamente a perder a nossa inocência. O que  pede o grito dos inocentes?  Quem são os inocentes, além dos recém nascidos? Aqueles que clamam pela misericórdia da natureza que eles mesmos ajudam a destruir? Ou aqueles  que clamam pela ética, pela transparência  mas não devolvem um  mísero troco que lhe foi dado a mais? Ou ainda os que saem em passeatas  contra as drogas, mas se aliam com a traficante ao adquiri-la?  Ou quem clama pela justiça social, mas explora e oprime seus serviçais? Ou os que usam o poder para  humilhar, denegrir, desqualificar?  Inocentes?  Eu diria que é preciso sair com uma   tocha  de luz nas ruas, a procurá-los. Há uma longa lista  dos atos e fatos que nos roubam a inocência e nos impedem moralmente de gritar. Entretanto, desconfio muito das  inevitabilidades, até por acreditar que  nós seres humanos somos duais ou múltiplos e assim sendo, trazemos em nós  muitas incoerências.Já disse também que acredito na força do autoconhecimento o que me leva  a pensar que podemos retomar sim e sempre, o nosso direito de gritar pelo que  é certo e justo, vencendo os nossos limites e abrindo portas para possibilidades  em que possamos dizer diante do espelho: neste caso, sou inocente  e meu grito há de ser ouvido.

ONDE FICA O INFERNO?

Quando criança ouvia dizer que o inferno era uma enorme cratera, muito, muito funda, para onde ia a alma do pecador. Então eu perguntava onde ficava esse lugar e quem ia para lá. Minha mãe dizia: quem é guloso, quem mente, quem bate nos irmãos menores, quem é guloso ,  quem não obedece aos pais e mais um rosário de pecados. E que esse lugar que estava sempre ardendo em fogaréu, ficava em um ponto qualquer da terra. Claro, eu tinha pavor de morrer e ir para lá, pois eu tinha todos esses pecados. E de noite eu pedia: papai do céu, não me deixe ir pro inferno. Prometo ser boazinha amanhã. Cresci, tornei-me adulta ainda cultivando o pecado da gula por uma comida saborosa, mas a visão que tinha do inferno, mudou. Não acredito mais na cratera em fogaréu, mas  no inferno particular de cada um. E cada um sabe do seu.

AS NOSSAS PORTAS.

Abra a porta e a janela e vem ver o sol nascer...Porta aberta, essa porta não se fecha, contra ela não há queixa, são os braços de Jesus...Duas musicas  que nos remetem  aos nossos sentimentos, aqueles  guardados cuidadosamente atrás de portas bem fechadas ou aqueles que deixamos fluir pelos oásis da vida, sem a preocupação de aprisioná-los nos escaninhos do medo e do julgamento dos outros. Alguém me disse certa vez que meus olhos eram portas  abertas que escancaravam minhas mais primitivas emoções, tal como  a raiva por exemplo. O tempo nos ensina o domínio dessas emoções, mas abrir as portas da mente e do coração  para o novo, para o  inédito ainda é e sempre será, um desafio para todos nós. Gosto imensamente de viajar, por mim,  daria volta ao mundo, mas nada melhor do que abrir minha porta e adentrar no aconchego da minha casa.Aí é meu porto seguro.E essa porta eu abro para os que amo.

DONA  ISABEL

Era uma viúva, dona de umas terras, as   quais arrendava para os pequenos plantadores. Era elegante para os padrões da época, com os cabelos presos num coque e brincos penso que de ouro pendurados na orelha.  Tinha um filho único chamado Lourival, se não me engano. Corria o boato de que ela tinha um ciúme louco do filho e não deixava nenhuma  moça do lugar, por  os olhos nele. Naquele tempo eu ainda era menina, nem cheguei a conhecer o tal mancebo.  Dona Isabel tinha um apelido,  Velha Caroara. Em Santa Catarina, segundo o meu marido, caroara é a pessoa que gosta de fazer intrigas, fofoqueira, que fala mal de todo mundo. Alem disso corria  outro boato, de que Dona Isabel virava matinta  pereira nas noites  de lua cheia às  sextas feiras.  Uma bela tarde de verão, dessas em que o sol fica à pino, eu e minhas irmãs estávamos empoleiradas em cima de uma árvore, bem perto do caminho ou estrada por onde se transitava naquele tempo. De repente divisamos    Dona Isabel, sempre com sua sombrinha protetora. Ela caminhava com passo miudinho, parecia  uma põe- mesa, de tão empertigada que era.E então, resolvemos azucrinar  a pobre mulher e gritamos em coro: Velha Caroara, matinta pereira do Igarapé Açu de Cima!  Dona Isabel proferiu todo o estoque de palavrões  do seu arquivo.E nós, é claro com toda a falta de educação, caímos  na risada. Essas eram transgressões  que  cometíamos  naquele tempo e que  se nossa mãe descobrisse, vara de marmelo nas canelas. E foi o que aconteceu, pois dona Isabel não se fez de rogada e foi  contar a nossa travessura para minha mãe  e aí, pagamos pela nossa falta de respeito para com os mais velhos. Dona Isabel compõe a minha galeria dos   meus tipos inesquecíveis.


Obs: a matinta pereira era um pássaro noturno  com um assobio apavorante, mas naquele tempo dizia-se que era uma sina  dada como castigo a uma pessoa.  Igarapé Açu de Cima ainda é o povoado onde eu nasci.

Autora: Conceição Gomes – Curitiba/PR

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Número de acesso inicial: 160.535

4 comentários:

carlos costa disse...

Parabéns, amiga. Você merece todo esse reconhecimento dado pelo companheiro sol, rodeado de luzes, Carlos Lopes. Seus trabalhos são lindos, no conjunto. Um abraço.

Ana Bailune disse...

Grande autora! A participação dela no último Gândavos foi linda!

Anônimo disse...

Obrigada Carlos Lopes , Carlos Costa e Ana Bailune. Vindo de voces, é uma honra.

Anônimo disse...

Que delícia de textos, Conceição!
A gente lê que nem pisca.
(Alice Gomes)