domingo, 3 de abril de 2016

Licor de nozes

Autora: Anajara Lopes

Sempre fui apaixonada por licores. O de amarula, então, hum!... é uma delícia! Gosto do sabor forte, picante, doce, como engolir uma pimenta suave, dessas que não queimam muito, só atiçam as papilas gustativas. Como acender o fogo e aproximá-lo do corpo, com o cuidado bastante de não queimar, mas de modo suficiente a permitir que o calor faça suar o corpo e deixá-lo molhado.
Hoje lembrei-me de um licor de nozes que ganhamos de presente. Era um produto artesanal, feito numa pequena cidade da Alemanha que não me recordo mais qual. A garrafa ficou anos guardada. Eu não havia despertado o interesse de experimentar porque não sou muito fã de nozes e acabei esquecendo da bebida.
As crianças já estavam dormindo. Uma música suave tocava no velho toca-fitas. (Ainda existem?) Ah! Sim. As músicas foram selecionadas com cuidado. E eu, gostaria muito de enxergar naquele ambiente um clima romântico. Embora com esforço. Porque, intimamente, não mais conseguia disfarçar a minha total indiferença por ele, mas não podia deixar de aceitar o clima inspirador naquele dia que comemorávamos vinte anos de casamento. Conversamos muito, meia voz e meio tom.
Via no rosto daquele homem uma pessoa mais jovem, mais magra, mais baixa. O cabelo crespo. O rosto era bem mais delicado, com traços mais finos, outros olhos, outra boca, outra voz. Enfim, outra pessoa. Uma espécie de delírio que durou horas. Eu não me recordo do som da minha voz, porque devorei o licor tão depressa que destoou do tempo que ficara guardado esperando por mim.
Esperando por mim. Eu disse isso? É. Porque depois daquele dia eu nunca mais fui a mesma pessoa. Como se uma zona desconhecida da minha memória tivesse sido despertada. Eu cheguei até a pensar que todos os casais apaixonados deveriam ter uma garrafa de licor de nozes em casa esperando pelo momento exato de degustá-lo juntos.
As crianças não acordaram nem saíram andando sonâmbulas pela casa. A lua era cheia, clara e bela. O dia amanheceu como todos os outros.

Autora: Anajara Lopes - Itapecerica/MG

4 comentários:

Anônimo disse...

Muito, muito interessante o que diz sobre depois de 20anos. Não somos os . Será que licores façam tudo retornar ao principio? Amei o texto. Conceição Gomes.

Anônimo disse...

Muito bom texto, perfeitamente dentro dos parâmetros do concurso.

Parabéns a quem o produziu.

Alberto Vasconcelos

Marina Alves disse...

Tenho certeza de que nada nunca mais foi o mesmo depois desta garrafa de licor. Uma delícia de leitura, lindo conto. Parabéns ao autor.

Anônimo disse...

Com o passar dos anos em convívio creio que buscamos a nós mesmos no outro. Talvez os 20 anos passados sejam diluídos em algum licor do presente, para onde nos transportamos inevitavelmente, uns com o mesmo amor, outros sem aquele arrebatamento do "sim" primeiro. Esperando a nós mesmos seria em último caso a perda de um passado. Amei de morte morrida! Amei. Abraços, Michele C.Marchese