quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Percival

Michele Calliari Marchese

E então ela conheceu o Percival. Baixou os olhos para que ele não percebesse quanta admiração havia causado e não conseguiu entender nada do que ele lhe dissera naquele momento de apresentações. Baixou os olhos porque passaria a vida inteira olhando os dele, sem cansar; e também porque não poderia demonstrar – num olhar – o que lhe ia ao íntimo.
Seu coração não bateu descompassado como acontece com os namorados, bateu normalmente como se estivesse em casa preparando os filhos para a missa. Era como se o Percival fosse seu próprio coração, e assim sendo, não haveria o porquê de atrapalhar-se em suas batidas.
O tom da voz do Percival tinha o mesmo timbre da sua alma e ressentiu-se da sua vergonha em escutar o que ele lhe dissera naquele momento em que apertou a sua mão. Vigorosamente. Aquela mão forte, de homem trabalhador, tinha o mesmo toque da sua, quase não percebeu a diferença e confundiu-se por um instante, pois com o nervosismo poderia ter acontecido dela ter juntado suas mãos numa atitude de retração.
Pensou nele como uma metade do corpo pensa na outra, não há possibilidade de estarem separados, a não ser que estejam em corpos diferentes, e a esse pensamento suspirou que poderia ser amor ou poderia ser a coisa mais inexplicável que lhe acontecera em todos esses anos. Porém, sabia lá dentro do seu ser que nunca poderia ser. Não porque não podia, mas porque não precisaria.
O olhar do Percival mostrou que eles eram um. Brilhavam a luz dos homens fortes e íntegros, estavam úmidos como a mansidão do rio que corre à vida. E neles se via tudo, toda a vida com eles.
Mas em seu pensamento de mulher, aquele intenso segundo que conhecera o Percival, foi o suficiente para ter vivido com ele a vida inteira. Olhou para o marido que conversava com aquele homem e sabia que estava no lugar certo e com o homem certo. Era feliz e conhecera a felicidade nos olhos do Percival.
Quando encontrou o Percival pela segunda vez, havia passado alguns anos, e ele a abordara saindo da mercearia. Deu uns vinténs às crianças dela para que fossem comprar balas e falou naquela voz que ela conhecia desde sempre que ele estava apaixonado e sabia que ela também. Diante do silêncio que se fez no meio daqueles corpos que eram um, ele lhe disse que escreveria.
De olhos baixos ela nem se despediu. Não respondeu sequer com um suspiro àquelas perguntas que se detiveram na boca do Percival. Sabia que ele queria respostas ao seu amor, porém ela não tinha nenhuma. Nunca estivera apaixonada por ele e tampouco sentira falta. Lembrava-se do brilho dos olhos e da sua voz e do seu aperto de mão, mas como uma lembrança que se perde cada vez mais no percurso da estrada.
Recebeu a primeira carta em agosto daquele ano, justamente no dia do aniversário do primeiro filho. Leu porque achou tratar-se de algum “parabéns” que o Percival estaria dando ao filho dela, mas o que estava escrito a tomou de surpresa e pouco imaginava que aquelas palavras eram dirigidas à ela, pois o tamanho do amor tingido de azul foi emocionante. Ela chegou a chorar e choraria também se a carta não tivesse sido escrita para ela.
Muitos anos depois, quando o marido convidou o Percival para os festejos das Bodas de Ouro, ela finalmente encontrou-se com aquele olhar de homem acabado pela paixão não correspondida, viu que as cartas que ele lhe escrevera tinham sido um grande desabafo para continuar vivendo.
Encontraram-se frente a frente e deram-se as mãos no cumprimento e se perguntaram coisas vãs, coisas que já sabiam e então o Percival engasgou-se na sua emoção quando perguntou se ela havia recebido suas cartas.
Mais de doze mil cartas foram escritas pelo punho daquele homem apaixonado que nunca repetiu uma vírgula em suas missivas e todas tinham o mesmo teor: do homem que sofre com a ausência da mulher que ama.
Ela baixou os olhos e disse-lhe que somente a primeira carta havia sido lida – por um engano qualquer – e que todas as perguntas que tinha, nunca deviam ter surgido em seu coração. E perguntou se ele queria as cartas de volta, para acalentar os anos perdidos. Ou mesmo para entregar à outra mulher, pois ainda havia tempo dele casar.
O Percival negou lentamente com a cabeça, despediu-se com os lábios crispados de dor e foi embora sem dizer adeus.
Escreveu outras tantas milhares de cartas que lhe foi possível em vida e todas jaziam lacradas, organizadas por data e amarradas por mês abarrotando o porão da casa dela até que o marido finalmente lhe perguntou o que era aquilo e ela lhe respondeu não saber, mas que guardara por respeito.
Quando souberam da morte do Percival, ela e o marido esvaziaram o porão, e foi necessária uma carroça para empreender a viagem das cartas que foram colocadas dentro do caixão e foi preciso abrir uma tumba maior para que as outras coubessem lá. Descansaria com suas palavras de amor, nunca lidas.

Autora: Michele Calliari Marchese - Xanxerê/SC

3 comentários:

Marina Alves disse...

Um eterno e grande amor construído e alimentado de silêncio e espera. Para quem duvida que existe amor assim, o conto vem provar que é a mais pura verdade. Sensacional! Parabéns ao autor.

Anônimo disse...

Texto magistralmente escrito, real, e desafiador. Perfeitamente dentro dos parâmetros do concurso. Parabéns a quem o produziu.
Alberto Vasconcelos

Anônimo disse...

Muito, muito boa historia. Historias de amor são sempre bonitas, principalmente de um amor assim. Conceição Gomes;