Autora: Marina Alves
Rosália, até os quinze anos, se ocupara
das rezas da igreja. Tinha prestígio com as beatas, habitués da sacristia de
Padre Marinho. A razão se explicava: era dona de grande beleza, e tinha também
uma voz incomum, o que sempre lhe rendia interpretar o Canto da Verônica na
encenação da Paixão de Cristo, nas festas da Semana Santa, piamente celebradas
ali no povoado. E naquelas ocasiões, à sua aparição no tablado, trajando o elegante
figurino encomendado ao mascate Noca, os cabelos escorridos e luzidios sob o
negro véu, um frêmito de íntima comoção percorria os contritos fiéis aglomerados
à volta do palanque armado na pracinha da igreja.
Pois bem, Altivo Firmino não tinha do
que se queixar no que dizia respeito à conduta da filha. Mas, o que ele não
sabia é que a menina já se vinha adiantando nas artes do amor: andava de namoro
escondido com Tonico Ferreira, rapaz de modos rudes, que servia como ajudante
nas obras da Ferrovia. E foi justamente nas festas da Semana Santa que a coisa tomou
corpo: entre os roxos da Paixão de Cristo, incorporando os encantos da
Verônica, Rosália deu com os olhos do rapaz a mirá-la, numa intensidade que a fez
estremecer sob a túnica de bordados.
Sim, tinha sido ali, diante da visão
celestial de Rosália, que Tonico Ferreira se descobrira tomado de amor. Jurou
que haveria de tê-la para si. Ela, postada ao lado da cruz, parecendo absorver
o silencioso juramento, ao desdobrar o Véu da Verônica, aguçou ainda mais seu trêmulo
e retumbante timbre em notas tristes que comoveram a assembleia. E naquele
instante, mais que veneração ao Cristo morto, seu canto era só, e todo, para
encantar Tonico Ferreira que em terno branco e chapéu se encobria nas ramagens de
um jasmineiro, ao pé de um lampião. Ah, que paixão! Não teriam mais sossego! O
amor traçava ali seus rastros do para sempre, amém!
O bilhete tinha sido passado às mãos
dela, à descida do palanque: à meia noite, atrás da roseira branca ao pé da
janela. À hora marcada, sorrateira, ela esgueirou-se para a escuridão, caindo
nos braços quentes e bem fornidos que a apararam nas sombras. Muitos beijos!
Todos os beijos! Os mais doces já vistos nesse mundo. Amor era aquilo! O aconchego,
a vontade de nunca mais largar do outro, o último prolongar do encontro, até o
cantar do galo lá pros lados do grotão, quando os rajados da aurora no céu laranja-chumbo
vinham avisar que era hora de voltar à segurança do quartinho, antes que a casa
acordasse.
No dia em que o namoro foi descoberto,
o povoado de Santa Maria veio abaixo. O disse me disse se espalhou, a boataria
efervesceu de boca em boca. Rosália nunca
soube quem contou ao pai. Corrente na
janela, ferrolho na porta pelo lado de fora, o quarto virado em cadeia. E
Tonico? Tião Raposa, homem de confiança de Altivo, foi quem levou o recado: o infeliz
tinha até o romper do dia para sumir das cercanias. Ali amanhecendo, se desse
por morto. Tonico tomou rumo ignorado, na calada da noite. Quem conhecia a fama
dos Firminos sabia que um aviso daquela natureza não vinha duas vezes.
Sem os encontros tardios ao pé da
roseira branca, Rosália emagrecia a olhos vistos. Palidez de morte, faces encovadas,
definhava dia a dia a saudade do amor partido. O coração perdeu a vontade de
viver, a alma se fechou em viuvez de luto adiantado. Aonde andaria Tonico? Deus
fosse louvado, um dia ainda haveriam de se topar. Ia viver por esperar! Amor
daquele jeito não nascia pra morrer, não se acabava assim num à toa qualquer.
O tempo passou. Altivo Firmino
contratou casamento para a filha com o novo chefe da Estação, rapaz de juízo, e
de guardar cobres para o dia de amanhã. Rosália confinou-se a lamentar a
própria sina: longe do seu único e grande amor — nas mãos de quem não tinha
vontade nem de olhar — o que seria de si? A moça se debateu, rastejou, implorou,
pediu a Deus, mas de nada adiantou. As bodas foram marcadas para as festas de
Reis, no janeiro que se avizinhava.
Foi na volta da prova do vestido de
noiva que a coisa se deu: aquele que vinha pelo beco, lá das bandas da igreja, não
era Tonico? Não era? Não era? De repente, os dez longos anos passados desde a
furtiva debandada naquela fatídica noite sumiram que nem fumaça. Como quem vê
miragem correram um para o outro. O abraço foi de unhas se cravando, choro se
misturando e corpos rolando na poeira, no desafogo da saudade. Dele, ela só
ouviu: vim lhe buscar. O cavalo amarrado ao mourão à beira do capim alto, em ponto
de galope, esperava. Sem uma palavra,
ela pulou na garupa.
Depois disso, a julgar pelo que Noca,
caixeiro-viajante que rodava pelos mais distantes rincões, segredou aos ouvidos
de Altivo Firmino em seu leito de morte, os amantes fugitivos iam muito bem
obrigado. De pés juntos, o mascate jurou
ter visto os dois, já entrando nas calmas da velhice, cabelos algodoados e mãos
dadas: escutavam o lamento da Verônica, em festa do Cristo morto, numa cidadezinha
do interior de Goiás. No entanto, ninguém jamais soube se o dito era deveras ou
se não passava de mais uma patacoada do Noca, pois que o caixeiro sempre vinha
cheio de invencionices, na volta de suas andanças por esse mundão de meu
Deus...
Autora: Marina Alves - Lagoa da Prata/MG
Autora: Marina Alves - Lagoa da Prata/MG