sexta-feira, 29 de abril de 2016

Entrevista: Michele Calliari Marchese

Michele Calliari Marchese

Um autor dedica-se a escrever por diversos motivos. Talvez pelo desejo de dividir experiências e guardá-las para o uso na posteridade. Ser lembrado pela sua maneira de perceber o mundo ou apenas pelo prazer de sentir o ritmo de uma boa narrativa. Ao usar a palavra no sentido mais amplo possível, ele tem o poder de conduzir ideias em direção, que de outra forma, não existiriam e não teriam a oportunidade de serem vistas.


A escritora Michele Calliari Marchese é catarinense de Xanxerê, mãe do Ulisses de 6 anos, formada em Ciências Contábeis pela UNOESC/SC, escreve por necessidade e paixão senão o peito estoura, como a própria afirma. Ela manteve uma coluna no Jornal Folha Regional de Xanxerê por três anos onde publicou contos, causos e crônicas e atualmente mantém um blog com a amiga e comadre Helena Frenzel, o “Sem vergonha de contar” e participa eventualmente do Blog “Gandavos”.

1-   Quando e como surgiu seu interesse pela leitura e escrita?

Michele Calliari Marchese - Eu lembro que não via a hora de aprender a ler para poder devorar a biblioteca do meu pai. Tinha 6 anos. Naquele ano escrevi uma música e ficava cantando pela casa.

2-   Quais foram seus livros preferidos quando era criança e os livros favoritos atualmente?

Michele Calliari Marchese - Na infância foi a coleção “Ler e Saber”, um Dicionário de História Mundial, a vida de Mao Tsé Tung (que na época não entendi muito) e milhares de gibis. Eu leio tudo o que aparece, atualmente estou lendo  “A incrível viagem de Schakleton” de Alfred Lansing, “Trem noturno para Lisboa” de Pascal Mercier e “1421 O ano em que a China descobriu o mundo” de Gavin Menzies”. Os três juntos, porém não tenho favoritos, todos de alguma forma preencheram meu vazio circunstancial.

3 - Quais escritores são suas fontes de inspiração?

Michele Calliari Marchese - Kafka, Virginia Woolf e Gabriel Garcia Marquez.

4 - De que forma o conhecimento adquirido, seja pelo senso comum, ou pelo meio acadêmico,  ajuda na hora de escrever?

Michele Calliari Marchese - Tudo ajuda na hora de escrever.

5- Segundo o escritor Rubem Fonseca, “a leitura, a palavra oral é extremamente polissêmica. Cada leitor lê de uma maneira diferente. Então cada um de nós recria o que está lendo, esta é a vantagem da leitura". É isso mesmo? Concorda com essa proposição?

Michele Calliari Marchese - Concordo com a proposição. Já cansei de conversar com leitores do mesmo livro ouvindo interpretações diferentes e muito além ou aquém de minha própria percepção sobre o escrito.

6- Ainda segundo o Escritor Rubem Fonseca: “um escritor tem de ser louco, alfabetizado, imaginativo, motivado e paciente.” É o suficiente para ser um bom escritor?

Michele Calliari Marchese - Falta aí o mais importante para mim: amor. Eu não sou paciente e acho que não sou louca! Cada um escreve conforme a sua referência, a sua paixão, aquela força motora que faz com que a pena não descanse enquanto não se esvazia a mente e o coração.

7 - Para qual público se destina sua criação?

Michele Calliari Marchese - Tenho alguns escritos que não são para o público infantil, por conter cenas demasiadas de psicologia sofrida, no entanto tenho causos que as crianças adoram. Tudo depende do que escrevo.

8 - Como funciona o seu processo de criação? Quais sãos suas manias (ritual da escrita)?

Michele Calliari Marchese - Não tenho mania. Tá na cabeça? Sai para fora!

9 - Em geral, os seus personagens são baseados em pessoas que você conhece, ou são ficcionais?

Michele Calliari Marchese - Ficcionais.

10 - No seu processo de criação já atravessou alguma crise de falta de inspiração?

Michele Calliari Marchese - Olha, eu tenho textos dificeis que acabam comigo, para vc ter uma ideia conclui um conto depois de um ano e tres meses. Mas nao foi por falta de inspiraçao. Creio que quando o conto aparece na minha cabeça eu praticamente tenho ele todo montado. E só vou floreando os caminhos.

11 - Você tem outra atividade, além de escrever?

Michele Calliari Marchese - Primeiramente sou mãe, contadora de formação, trabalho na empresa da família e depois vem a escrita.

12 - Você faz parte das Coletâneas Gandavos. Qual a sensação de participar ao lado de escritores de várias regiões do país?

Michele Calliari Marchese - Eu me sinto muito lisonjeada e honrada.

13 - O financiamento coletivo e a publicação independente têm se mostrado a opção das publicações Gandavos.  Quais são os pontos positivos e negativos desse tipo de publicação?

Michele Calliari Marchese - Não há pontos negativos. Só positivos, pois mostra o trabalho de muita gente que escreve por esse Brasil afora.

14 – Você já fez publicação de livros sozinha, seja impresso ou virtual? Quais e como o leitor pode adquiri-los?

Michele Calliari Marchese - Não tenho nenhuma publicação de livros individual; virtualmente saiu um em companhia de Helena Frenzel “Os causos da Campina” que pode ser baixado no Blog Sem Vergonha de Contar que mantemos juntas há algum tempo.

15 - Qual mensagem você deixaria para autores iniciantes, com base em suas próprias experiências.

Michele Calliari Marchese - Nenhuma! Escrevam somente, releiam miseravelmente até a morte, cortem todas as palavras que não prestam e jamais esqueçam: tudo já foi contado.  

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Entrevista: Alberto Vasconcelos

Alberto Vasconcelos

Um autor dedica-se a escrever por diversos motivos. Talvez pelo desejo de dividir experiências e guardá-las para o uso na posteridade. Ser lembrado pela sua maneira de perceber o mundo ou apenas pelo prazer de sentir o ritmo de uma boa narrativa. Ao usar a palavra no sentido mais amplo possível, ele tem o poder de conduzir ideias em direção, que de outra forma, não existiriam e não teriam a oportunidade de serem vistas.
O nosso primeiro entrevistado é o escritor Alberto Vasconcelos, nascido no Recife/PE, numa festa de aniversário. Como ele mesmo se define: ¨Virgem no zodíaco, macaco no chinês. Gosto de ouvir e de contar histórias. Fui menino obediente e amorfo. Brinquei as brincadeiras de rua quando moleque. Fui Professor de História e ator. Beijei, namorei, noivei, casei, duas filhas, duas netas, divorciado casei com Márcia Barboza. Desde abril/12, mudei para Santo André/SP. Sou aposentado e Biólogo. Meu atual foco de atenção é a influência do imaginário no comportamento humano. Sou ateu e tenho o mau costume de acreditar nas pessoas. Amigo é amigo; inimigo é inimigo¨.

Pergunta 1 -  Quando e como surgiu seu interesse pela leitura e escrita?
Alberto Vasconcelos - Desde a 1ª infância fui acostumado a ouvir histórias e quando fui alfabetizado, li de bula de remédio a Camões. Na escola, éramos estimulados a produzir textos dissertativos a partir de imagens colocadas em cavaletes. Acredito que foi assim.
Perguntas 2 - Quais foram seus livros preferidos quando era criança e os livros favoritos atualmente?
Alberto Vasconcelos - Robinson Crusoé (Daniel Defoe) que ganhei quando nem estava alfabetizado, depois os livros do Professor Mário Sette (Terra Pernambucana, Maxambombas e Maracatus, O Palanquim Dourado...) José de Alencar, Machado de Assis, Castro Alves, Dostoievsky, Érico Veríssimo, Júlio Verne, Karl May, Guerra Junqueiro, e tantos mais que nem lembro. Hoje em dia Richard Dawkins e de contos em geral.
Pergunta 3 - Quais escritores são suas fontes de inspiração?
Alberto Vasconcelos - Não saberia dizer, porque não tenho autor favorito e no que escrevo tem sempre um pouco de cada trabalho que li e que me impressionou.
Pergunta 4 - De que forma o conhecimento adquirido, seja pelo senso comum, ou pelo meio acadêmico,  ajuda na hora de escrever?
Alberto Vasconcelos - Não é só na hora de escrever, é no dia-a-dia, é na nossa maneira de ser. Quando escrevemos, revelamos quem somos e o ambiente em que fomos criados e no que vivemos, porque escrever é apenas uma das formas de viver outras vidas além da nossa.
Pergunta 5 - Segundo o escritor Rubem Fonseca, “a leitura, a palavra oral é extremamente polissêmica. Cada leitor lê de uma maneira diferente. Então cada um de nós recria o que está lendo, esta é a vantagem da leitura". É isso mesmo? Concorda com essa proposição?
Alberto Vasconcelos - Sim. Sem dúvida, cada palavra ou conjunto delas, tem uma ressonância específica dentro daquele arcabouço que construímos desde a primeira infância. Durante a leitura, nos tornamos coautores do texto ao emprestar-lhe imagens, cores, sons, formas e, muitas vezes, o que para uns nada, ou quase nada significa, para outros pode ter consequências desastrosas.
Pergunta 6 - Ainda segundo o Escritor Rubem Fonseca: “um escritor tem de ser louco, alfabetizado, imaginativo, motivado e paciente.” É o suficiente para ser um bom escritor?
Alberto Vasconcelos - Para ser escritor, sim. Se é bom ou mau depende de cada leitor pois essa avaliação não nos pertence.
Pergunta 7 - Para qual público se destina sua criação?
Alberto Vasconcelos - Posso comparar os meus textos com folhas destacadas das plantas que o vento leva sem nem ele mesmo saber para onde. Se vai servir ou não, não saberia dizer porque escrevo para satisfazer a minha necessidade de contar historias, quase sempre, para uma plateia vazia.
Pergunta 8 - Como funciona o seu processo de criação? Quais sãos suas manias (ritual da escrita)?
Alberto Vasconcelos - Raramente estabeleço um roteiro para a historinha que vou escrever. Na maioria das vezes a inspiração vem solta e ela mesma se encarrega de por o ponto final. Antes só escrevia a lápis, hoje, mais modernoso, escrevo diretamente no notebook, sem estresse nem rituais, os quais, considero excesso de frescura.
Pergunta 9 - Em geral, os seus personagens são baseados em pessoas que você conhece, ou são ficcionais?
Alberto Vasconcelos - Sempre ficcionais, mas em cada um deles há pedacinhos dos conhecidos e principalmente de mim mesmo.
Pergunta 10 - Você tem outra atividade, além de escrever?
Alberto Vasconcelos - Atualmente não.
Pergunta 11 - Você faz parte das Coletâneas Gandavos. Qual a sensação de participar ao lado de escritores de várias regiões do país?
Alberto Vasconcelos - É uma experiência maravilhosa que, ao mesmo tempo em que nos enche de satisfação, nos preocupa, pois é real a possibilidade de dizermos tolices diante dos grandes mestres Gandavos.
Pergunta 12 - O financiamento coletivo e a publicação independente têm se mostrado a opção das publicações Gandavos.  Quais são os pontos positivos e negativos desse tipo de publicação?
Alberto Vasconcelos - Os pontos positivos não precisam ser ditos, pois são evidentes e todos nós os sentimos. Único ponto negativo é o número de exemplares que temos que adquirir.
Pergunta 13 – Você já fez publicação de livros sozinho, seja impresso ou virtual? Quais e como o leitor pode adquiri-los?
Alberto Vasconcelos - Só publiquei livros via Gandavos. Tudo o que escrevi está publicado no site Recanto das Letras, portanto não há necessidade de e.book. Conforme já lhe disse por diversas vezes, prefiro deixar a árvore em pé a transformá-la em papel para publicar os meus textos.
Pergunta 14 - Qual mensagem você deixaria para autores iniciantes, com base em suas próprias experiências.
Alberto Vasconcelos - Escreva pelo prazer de escrever. Use o seu vocabulário doméstico, seja simples, direto, respeite os cânones gramaticais, a grafia e escreva para doutores, mas de tal forma que analfabetos lhe entendam.

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Devaneios de um tricô

Autora: Michele Calliari Marchese

Ela estava sentada na varanda, sentindo o vento refrescar aquele calor insuportável e pensando quando terminaria aquele tricô dos infernos que vinha atormentando suas ideias há mais de duas semanas, justamente quando o verão começou em pleno inverno. Aqui na Campina da Cascavel tem dessas coisas, esfria no verão e esquenta no inverno, isso sem falar nos ventos enviesados que sopram de surpresa e do lado errado.
Fechou os olhos a imaginar-se tecendo carreira por carreira e colocando uma cor diferente aqui e ali para dar um toque mais feliz naquela blusa encomendada. Com todo o suor que escorria do seu rosto era-lhe impossível lembrar quem havia feito aquele pedido inóspito. Fosse feito no início do frio e não no meio quando acontecem as intempéries e o clima muda constantemente, tudo bem. Decerto esfriaria no dia seguinte e então trabalharia com as agulhas ao lado do fogão a lenha esquentando-se com o resultado do tricô que cairia pelos joelhos num claro sinal de que avançava rapidamente em seu trabalho.
Tirou os chinelos que grudaram em seus pés e jogou-os longe para nunca mais vê-los; amanhã estaria com meias de lã que teceria em algumas horas. Colocaria pompons nos tornozelos. Pompons cor de rosa. Sempre gostara dessa cor e achava-se bonita nela. Pensou estar com a pele vermelha de tanto calor e o vento que antes refrescava agora sumira para ventar em outras paragens e levantou-se para beber água. Um dia teria também uma geladeira e conseguiria água gelada como a vizinha lhe contou e a fez experimentar. Sensação nunca esquecida e que era bem vinda naquele tormento.
“E o tricô?” Resmungou baixinho como se fosse um pedido ao além. Não podia tecer nada naquele calor e o colete encomendado teria que esperar, ou era uma blusa? Não soube precisar e tampouco fez questão disso. Espalhou-se um pouco mais na cadeira da varanda e viu as árvores balançando ao sabor do vento que soprava lá, mas não onde ela estava. Faria o tricô na cor verde, um verde de folhas, de árvores, quem sabe colocaria uma linha marrom no começo para dar a sensação da pessoa estar vestindo uma árvore. Sim, ficaria lindo. Terminaria assim que começasse o frio. Apesar de que as primeiras carreiras não aquecem muito as mãos, então poderia fazer as meias com pompons cor de rosa para realçar a pele da menina. Menina bonita aquela. Pena que a encomenda tinha sido em época tão energúmena.
Molhou um lenço para amainar o calor do rosto e àquela hora já eram horas do marido voltar da lida e estranhou a ausência dele com um cair de braços preguiçosos. Poderia dormir ali não fosse a rudeza da cadeira. Não poderia esquecer jamais do tricô. Usaria agulhas número 6 para que ficasse com os pontos maiores e terminar imediatamente, antes do verão dar as caras e ela não conseguir mais tecer coisa alguma. Um casaco leva tempo. Faria cachecol e toca para o marido, nas cores do vento. “Será que a vendinha do Seu Egídio tem a cor que eu quero? Duvido. Duvido que ele saiba a cor do vento.”
Usaria um ponto inventado nunca visto antes por ninguém e sairia com o marido todo vestido por ela, explicando e ensinando às outras mulheres como fazer aquela maravilha de tricô. Ele teria que esperar, era-lhe impraticável tal feito naquele calor dos diabos. Não poderia esquecer-se das meias. E dos pompons. E do resto também. Correu para dentro de casa a preparar a janta que o marido não tardaria em chegar. Arrumou um cesto onde depositaria todas as lãs para aquela encomenda inusitada. Pensou no despropósito daquele pedido e no dia seguinte iria ter com a pessoa que ela nem lembrava mais quem era para cancelar tamanha vestimenta. Não era capaz – e isso ela fez as contas – em aprontar casacos, blusas, coletes, meias e outras coisas mais em tempo tão curto. Quando fosse dormir lembrar-se-ia do solicitador.
Fez as contas também do quanto gastaria naquela montoeira de lãs e parafernálias que exigiam apuro e deixou o arroz queimar. Pegou a panela e jogou no quintal. Não teria dinheiro suficiente para a empreitada e o que fazia o marido que não chegava? Pediria a ele um adiantamento e lhe pagaria depois quando recebesse de seus clientes pelos trabalhos feitos com tricô.
Procurou os chinelos em vão. Não gostava de andar descalça pelo soalho lustroso e resolveu tomar banho. Debaixo do chuveiro de água fria, sentiu falta daquele mormaço inebriante de horas atrás e mais um dia se passou sem que ela conseguisse iniciar seus inúmeros trabalhos como tricoteira. Era a melhor da cidade e por causa da fama, pedidos e mais pedidos chegavam sem ela se dar conta que de algum não tinha tirado nem as medidas e aquela pequena que queria as meias com pompons? Como faria sem saber o número que ela calçava? Ao pegar o sabão lembrou que era uma recém-nascida, filhinha da Margarete, aquela da geladeira.
Um dia teria uma geladeira, pediria ao marido quando encontrasse um e casasse. Por hora tricotaria em seus sonhos impossíveis de mulher.
Saiu do banho em dúvidas quanto as cores de uma luva que tinha por fazer.

Autora: Michele Callian Marchese - Xanxerê/SC

terça-feira, 5 de abril de 2016

Gratidão a todos!


Segundo o grande Rubem Fonseca, “a leitura, a palavra é extremamente polissêmica. Cada leitor lê de uma maneira diferente. Então cada um de nós recria o que está lendo, esta é a vantagem da leitura".

Talvez apenas palavras não sejam suficientes e significativas que me permitam agradecer a homenagem que hoje recebi da Cehab e Secretaria de Habitação. Porém apenas posso me expressar através da limitação de minhas palavras. Sou grato aos gestores e aos servidores, com quem divido sonhos, experiências e conquistas, em especial às jornalistas, Tarciana de Carvalho que me entrevistou, e a Danielle Coutinho Cavalcante que fez fotos para a homenagem. Enfim, agradeço do coração a cada um de vocês que sempre estiveram comigo a cada livro publicado. Cada qual à sua maneira, sempre recebi sugestão, um pormenor virtuoso, uma ideia a ser incorporada no baú das minhas criações.
Sempre procurei escrever e descrever sentimentos, verdades e imaginação, a fim de atingir cada leitor, pois cada história pode ser um abraço, uma celebração da nossa festa interior.
Saibam, o que sempre me encorajou, foi olhar para o lado e ver pessoas amigas presentes. São essas pessoas que nunca nos deixam desanimar.  Amigos que nos dão palavras de coragem e eu tive a sorte de encontrar vocês.
Certa vez ouvi uma frase mais ou menos assim: "A medida do reconhecimento é dada pelo quanto você ajuda as pessoas a conquistar". Quando lancei a série Gandavos, meu maior objetivo foi o de tornar mais acessível a várias pessoas, a publicação de seus textos, usando as oportunidades que a internet nos oferece.
Os agradecimentos são tantos e tão profundos, que a melhor forma de retribuir que encontrei, foi sempre dar o máximo de mim em cada obra publicada.  Assim, ao folhear cada página, o leitor se sintirá abraçado por meio de minhas palavras e dos sentimentos nelas expressos.


domingo, 3 de abril de 2016

Licor de nozes

Autora: Anajara Lopes

Sempre fui apaixonada por licores. O de amarula, então, hum!... é uma delícia! Gosto do sabor forte, picante, doce, como engolir uma pimenta suave, dessas que não queimam muito, só atiçam as papilas gustativas. Como acender o fogo e aproximá-lo do corpo, com o cuidado bastante de não queimar, mas de modo suficiente a permitir que o calor faça suar o corpo e deixá-lo molhado.
Hoje lembrei-me de um licor de nozes que ganhamos de presente. Era um produto artesanal, feito numa pequena cidade da Alemanha que não me recordo mais qual. A garrafa ficou anos guardada. Eu não havia despertado o interesse de experimentar porque não sou muito fã de nozes e acabei esquecendo da bebida.
As crianças já estavam dormindo. Uma música suave tocava no velho toca-fitas. (Ainda existem?) Ah! Sim. As músicas foram selecionadas com cuidado. E eu, gostaria muito de enxergar naquele ambiente um clima romântico. Embora com esforço. Porque, intimamente, não mais conseguia disfarçar a minha total indiferença por ele, mas não podia deixar de aceitar o clima inspirador naquele dia que comemorávamos vinte anos de casamento. Conversamos muito, meia voz e meio tom.
Via no rosto daquele homem uma pessoa mais jovem, mais magra, mais baixa. O cabelo crespo. O rosto era bem mais delicado, com traços mais finos, outros olhos, outra boca, outra voz. Enfim, outra pessoa. Uma espécie de delírio que durou horas. Eu não me recordo do som da minha voz, porque devorei o licor tão depressa que destoou do tempo que ficara guardado esperando por mim.
Esperando por mim. Eu disse isso? É. Porque depois daquele dia eu nunca mais fui a mesma pessoa. Como se uma zona desconhecida da minha memória tivesse sido despertada. Eu cheguei até a pensar que todos os casais apaixonados deveriam ter uma garrafa de licor de nozes em casa esperando pelo momento exato de degustá-lo juntos.
As crianças não acordaram nem saíram andando sonâmbulas pela casa. A lua era cheia, clara e bela. O dia amanheceu como todos os outros.

Autora: Anajara Lopes - Itapecerica/MG

sábado, 2 de abril de 2016

Um Solo de Clarinete

Autora: Denise Coimbra

Manhã de domingo. Uma mulher absorta e alheia parecia ler ou escrever. De súbito, desviou os olhos para a janela. Em seguida mirou o apartamento em frente. Aquietou-se.
A suavidade sonora emitida por um solo de clarinete seduzira e tocara profundamente a sua alma. Aquele instrumento cuja tessitura tão extensa quanto bela, possuía também uma nuance sutil e ao mesmo tempo tão compacta quanto a sua solidão.
Naquele timbre, parecia ouvir o canto de uma voz, como a de sua amiga, Eunice, a única a quem tivera coragem de contar um pouco sobre si e seus medos.
O silêncio era o maior deles e sempre a paralisava. No auge de sua solidão chegara a ler em voz alta todas as palavras e significados do dicionário. No criado ao lado da cama. O abajur, os óculos e, claro, o glossário aberto na primeira página. Ridícula e aliviada, lembrara de sua estratégia de guerra preparada durante os momentos de puro desespero.  
Suas indagações, feito lava de vulcão, impregnando o ar: quem seria o autor? Quem seria o solista? Qual o nome de tão bela composição?  
Para ela, naquele dia, era imprescindível saber...
Bateu à porta. De novo. A música interrompida. Quieta, à espera. Pela fresta. Um homem desconcertado a espreita.  Grisalho, sobrancelhas erguidas, cabeça em movimento como se a perguntasse: o que desejas? Surpreendida, fez menção de desculpar a impertinência, todavia, a música dentro dela retumbava como um djembê africano. Ofegante perguntou:
— Você é o autor dessa música tão maravilhosa? Onde posso adquirir o cd?
— Sou. Comigo. Respondeu conciso e aparentemente, incomodado.    
— Gostaria de levar dois! Disse ela apreensiva e assaz perturbada pelo encontro com aquele homem cujas mãos firmes demonstravam costumeiro e extremo cuidado com o clarinete. 
Ligeiramente mais simpático, ele virou-se e abriu a porta. Célere, ela entrou. Incrédulo e de forma abrupta, o homem disse-lhe:
— Por favor, espere à porta.
Ela, monossilábica e enrubescida, desculpou-se e quase foi embora. Mas, permaneceu à soleira da porta.
O homem retornou, entregou-lhe dois cd’s e comunicou-lhe o preço. Imediatamente ela enfiou a mão no bolso. Mostrou-o vazio dizendo:
— Vou pegar o dinheiro e já volto! Ao que o homem respondeu:
— Deixe para o final da tarde e venha para um café!
16:53: A porta aberta. Entrou. Logo à frente, uma mesa. Uma jarra de suco, bolo, pães. Manteiga. Geléia e queijo. Xícaras, pratos, copos, facas, colheres. Um forro grande com estampas musicais. Um arranjo encantador e minimamente orquestrado. A música tomou conta da sala e era lindíssima! Reconheceu-se na melodia ouvida pela manhã. O som vibrava em seu corpo inteiro. Ficou sem graça com tal excitação. Hesitante, olhou para o sofá onde ele estava. Com um gesto rápido e delicado o homem indicou que ela sentasse.
18:10: A música termina. Ele deposita o cd em suas mãos. Levanta-se e a convida para  tomar um suco enquanto ele prepara o café. Elza, extasiada, precipita-se em pensamento: estou apaixonada! Mas o aguarda em silêncio. Ela guarda em seu coração o amor e a paixão recém-nascidos e prematuros. Deveria cuidar um pouco mais deles até que adquirissem um mínimo de força para se mostrarem. A ele e ao mundo.
É preciso dizer-lhe leitor, que Elza, sempre fora muito sensível, um misto de flor, a mais frágil e aquele que a beija, o menor, ainda existente no mundo. Como o beija-flor abelha, ela era uma jóia cintilante e o brilho dela, tal como o dele, são como o do arco-íris, intenso e delicado, mas só se visto pelo ângulo certo.
18:22: O café foi servido. Os pães, bolo e queijo degustados e apreciados por ambos. Entre mordidas, palavras trocadas. Risos tímidos, olhares de soslaio. Uma atmosfera aconchegante e afetuosa fora instalada. Permaneceram ali por mais de duas horas. Não que o tempo para eles fosse importante! Mas para mim o é e para você também leitor, que se lembrará de ter vivido instantes infindos, muitas vezes, mesmo que por segundos!
20:35: Ela despediu-se, agradecendo a companhia, o café e os cd’s.
E assim foi por quase seis meses. Ela apaixonadíssima e ele também! Embora nunca falassem sobre isso. O que sentiam e viviam não cabia em palavras. Somente a música em toda a sua dimensão e alcance falava aos seus corações por meio de acordes exuberantes. Ela nada mais temia.
Até o dia em que ele mostrou-lhe uma carta. As únicas palavras que ela leu em voz alta. Regente. Orquestra. Berlim.  Não perdeu tempo. Mudou-se para a casa dele. Queria tudo o que fosse possível viver e sentir durante os sete dias, em que juntos, ainda estariam. A companhia do tempo, ela intuía, nunca mais eles a teriam...
E foi esplêndido! E foi estupendo o período em que estiveram unidos! Por fim, embalaram os móveis, fizeram as malas e juraram que não fariam planos nem promessas. Poderia dar azar. Ela titubeou e o clima azedou um pouco quando ela sugeriu encontrarem-se nas férias e no final do ano. Ele não quis. Ela recuou.
No dia seguinte. Ele foi embora. Ela ficou. E, quando a tristeza a dominava, ela escutava o cd e olhava pela janela. A cada acorde, acordava nela uma lembrança do que ela fora e vivera durante aquela semana. Por um tempo foi o bastante até que não foi mais suficiente.
Numa manhã de domingo. Tomou um avião para a Alemanha. Alugou um apartamento. Em frente ao dele. Sentou-se e começou a escrever:
À janela, um homem. Seus olhos a vaguear... No apartamento em frente, uma mulher absorta e alheia.  Sentada diante do computador, parecia ler e escrever, mais do último parecia ocupar-se.

Autora: Denise Coimbra - Bom Despacho/MG

sexta-feira, 1 de abril de 2016

A prisioneira

Autor: Geraldinho do Engenho

Presa na alcova da casa grande, ela passava as horas ruminando saudade daquele amor inocente, cuja semente germinava no seu ventre. Eram quase crianças, mas o amor falou mais alto.
A mãe submissa mal podia tocar o nome da filha. Aos amigos o pai dizia que a filha decidira pôr em prática sua vocação religiosa com seu voto de pobreza.
Do jovem que misteriosamente desapareceu, os pais esperavam pelo milagre de sua volta. A pobre mãe perdera em lágrimas toda alegria de viver.
Toda a hipótese seria válida, mas a mais viável seria a grande cheia tê-lo sugado impiedosamente, naquela ultima tempestade que desabou como um dilúvio.
A reputação do pai com a patente de coronel, e com seu poder, eram mais importante e acima de qualquer bem material, o imaterial não fazia parte de sua trajetória. Obviamente o que contava era apenas sua conotação social onde o poder do vil metal era o magistral juiz
Naquele cubículo quase sem claridade, a esperança era a única luz. Somente a bondosa Bá que a viu nascer e preparara com tamanhos mimos e carinho sua festa de 15 anos, tinha acesso a ela.             Despojada de suas jóias, restara apenas sua correntinha de ouro cujo pingente era uma medalhinha da Virgem Maria contendo as iniciais A.C. de Ana Cristina, nome escolhido pela mãe, o único desejo satisfeito pelo marido naquele matrimônio marcado por um angustiante machismo.
Já no sexto mês de cativeiro e angústia, seu único contato era quando sua BA e sua mãe furtivamente burlavam as ordens do pai, levavam-lhe um pouco de afeto.
Enfim chegara o momento. Fortes dores e contrações repetidas anunciaram o que deveria ser o fim de um martírio.  O choro de anjo, num bebê robusto de olhos azuis, quebrou a monotonia daquele quadrilátero sem ventilação. A alegria da mãe ao recebê-lo no seu aconchego cortou o coração de sua Bá, sabedora do destino incerto daquele indefeso inocente.
À exata zero hora, nascia o fruto daquele amor proibido. Duas horas após, uma carruagem desaprecia na curva da estrada deixando para trás os rastros da crueldade e, na sombra da noite, uma pobre mãe que mal teve tempo de colocar seu único bem, um pingente da mãe de Jesus, no pescocinho de seu bebê. As horas passaram moderadamente. Os apelos da nova avó só aumentaram o ódio do pai cujo objetivo era apenas lavar o que ele afirmava ser sua honra.
Mais duas semanas já não havia mais lágrima na fonte resignada daqueles olhos quase sem cor, tentando suportar a claridade de um novo presídio, desta vez liberta da escuridão, mas longe do único bem que lhe restou.
Aos poucos, a dor da alma petrificava. No coração, uma cicatriz profunda emoldurada por aquele rostinho que fora brutalmente arrebatado dos teus braços.
Penalizada com tamanha tristeza a madre superiora do convento onde fora aprisionada, compadecida, estendeu-lhe a mão num gesto de ternura maternal. E assim pouco tempo após, as chagas da solidão já sinalizaram um abertura para a alegria, embora a saudade obstruísse aquele sorriso que ficou tão distante, perdido na penumbra sombria da alcova. Mas os estudos e as orações preencheram aquele vazio. E a bondosa madre já conhecia todos os detalhes do seu martírio.
Agora seria possível, autorizada pela madre, arbitrar sua própria decisão na escolha do caminho a seguir. Pela primeira vez, sentiu-se aliviada sob o manto protetor da superiora que lhe delegou o poder de escolha. Sonhar sim, mas sorrir ainda era cedo, talvez impossível.
Estava decidida a obedecer a sua vocação e cursar enfermagem. Cinco anos de dedicação e o sonho realizado. Estava com o tempo dividido entre o primeiro emprego no hospital público mais as horas dedicadas ao convento que adotara como filha. Ocupações que preenchiam todo aquele espaço que um dia alimentou o sonho de um grande amor. E assim mais vinte anos de portas fechadas para o amor, sem uma única noticia de pai e mãe.
Conserva-se o caráter sombrio e profundo pela convivência com aquele filme engavetado na mente que vinha à tona quase sempre. Os anos de experiência, cursos e congressos a colocaram num patamar de capacidade e conhecimento indispensável para aquela instituição que se tornara como seu verdadeiro lar.
Era uma quarentona, agora, que jamais pensaria em amor, bastando-lhe seu círculo de amizade enriquecido no trabalho coroado pelo êxito profissional.
Isso até aparecer Júlio César, aquele médico dedicado de olhos azuis que reprisava um rostinho inocente que estivera em seus braços, por poucos momentos, há exatos vinte cinco anos. Seria amor à primeira vista ou ironia que viera mudar seu destino?
O fato é que ambos estavam perdidamente apaixonados. Há poucas semanas se conheceram, mas ambos tinham histórias a ser desvendadas e a perda de tempo poderia atrapalhar aquele amor que surgiu quase num estalar de dedos. Os colegas de trabalho e a velha madre do convento ficaram eufóricos quando anunciaram o noivado.
Travou-se uma disputa acirrada entre hospital e colégio pelo local na realização do enlace. Venceu a madre que ofereceu a capela do convento, alegando ser o lar de Ana Cristina e se dizendo em condições de providenciar um padre do orfanato vizinho para a celebração.
Tudo preparado, a capela superlotada, a noiva deslumbrante, o noivo, idem, e o padre, um jovem de vinte e cinco anos, rosto modelado, olhos azuis.  Ana Cristina encantada com aquele rosto jovial, que lhe parecia familiar, estava quase sem voz para responder o ritual da cerimônia.
Terminando, o jovem padre abraçou os noivos e num gesto de carinho começou a discursar fundamentado no tema bíblico sobre a paternidade. Dizendo lamentar-se não ter conhecido os pais. Fora entregue ao orfanato pelo avô juntamente com uma alta cifra em dinheiro, um valor suficiente para custear seus estudos. Embora tivesse pesquisado a respeito de sua origem, nada havia conseguido. Apenas possuía uma pequena medalha que segundo afirmaram, levaram com ele.
Admirado, Julio César retrucou:
—Curiosamente temos história parecida. Eu me chamava Antônio Carlos. De repente cai num profundo sono e fui seqüestrado não sei por quem. Quando acordei, estava preso num colégio interno e com uma certidão de nascimento com o nome de Júlio César e afirmando ser filho de pais desconhecidos cuja herança fora depositada em um banco. Esta herança seria liberada somente para o reitor do colégio custear meus estudos.  E assim eu cursei medicina e aqui estou, mas pretendo em breve procurar minha origem. O sonífero que me aplicaram apagou completamente meu passado, a minha memória tem registro obscuro. Lembro-me vagamente em sonhos, de ser chamado pelo nome Antônio Carlos.
Ana Cristina que até então só ouvia entra em cena.
—E tu padre responda-me... Tua medalha tem as iniciais A N.?
—Sim... Ei-la aqui!
—Me abrace, filho querido... Sou tua mãe e aqui está teu pai!  Dr. Julio César é teu pai! Somos vitimas da ganância e do preconceito do teu avô, um coronel tirano sem coração, que acredito deve estar ardendo nas chamas do inferno!
E sob os aplausos da platéia, os três se abraçam agradecendo a Deus o feliz encontro.

Autor: Geraldinho do Engenho - Bom Despacho/MG